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Helena Andrade e Pedro Vieira

A construção da cozinha comunitária no Assentamento Cafundão e o protagonismo feminino na agricultura familiar

Iniciativa estimula a economia circular e a ampliação de um saber ancestral

Para todos verem: Quatro pessoas celebram o momento de inauguração de um projeto ao ar livre, em uma área rural cercada por montanhas. Elas revelam uma placa comemorativa, coberta por um tecido branco e cercada por confetes coloridos. A placa pertence à Associação de Cooperação Agrícola Cafundão e marca o lançamento da cozinha comunitária.
Inauguração do início das obras da construção da cozinha comunitária no Assentamento do Cafundão. | Foto: Pedro Vieira

Passos firmes e determinados nos guiam através de uma descida na rua. Ela nos acompanha com os braços indo e vindo, contando diversas histórias de seu dia a dia na comunidade. Lá em cima, o céu irradia que nem seu sorriso aqui embaixo. Essa é Dulcinéia Martins, mais conhecida como Dona Dulce, de 57 anos, integrante da Associação de Cooperação Agrícola do Cafundão e agricultora local do Assentamento Cafundão, localizado no distrito de Cachoeira do Brumado, em Mariana.


Quando chegamos à sua casa, logo em frente havia o galinheiro. Seguindo adiante, seu espaço de plantio, com legumes, hortaliças e frutas dos mais variados tamanhos e gêneros alimentícios. De fato, um mar esverdeado repleto de couves, alfaces e cebolinhas. Dona Dulce trabalha desde nova. Aos 10 anos, já ajudava seus pais no plantio de legumes, feijão, milho e arroz. “Vou para a horta lá pelas 6h30min e aí fico mexendo na horta, capinando, plantando e cuidando dela até as 11h. Depois eu vou para dentro de casa fazer o almoço e volto pra horta lá pelas 16h para acabar com o resto dos serviços, jogar água e para apanhar algumas verduras para alguém que fez a encomenda”, afirma a agricultora.


Hoje em dia, dona Dulce realiza o plantio de hortaliças, vegetais e frutas, como salsa, almeirão, repolho, inhame, mandioca, abóbora e banana. Essa diversidade de gêneros alimentícios leva em conta o modelo de produção agroecológico, baseado na aplicação e difusão de conceitos ecológicos e sustentáveis na produção desses alimentos, deixando de lado a utilização de agrotóxicos.


Para todos verem:  A imagem mostra uma mulher em uma horta comunitária, segurando folhas de couve recém-colhidas. Ela veste uma blusa laranja e uma saia jeans, destacando-se em meio à vegetação ao redor.
Dulcineia Martins agricultora da comunidade do Cafundão. | Foto: Pedro Vieira

O Assentamento Cafundão possui cerca de 70 famílias e seu tripé econômico se sustenta através de três atividades: o artesanato de panelas de pedra sabão, a agricultura familiar e a fabricação de quitandas. Entretanto, a atividade que mais gera renda para a comunidade, que é o artesanato de pedra sabão - exercida majoritariamente por homens -, não possui uma grande participação das mulheres, o que faz com que sejam prejudicadas pela invisibilidade econômica. A demanda dessas mulheres em contribuírem com a renda econômica e familiar impulsionou o desenvolvimento do projeto de extensão “Alimentando o futuro: geração de trabalho e renda para mulheres do Cafundão a partir da produção e da comercialização de alimentos saudáveis e sustentáveis”, realizado pelo Núcleo de Pesquisas e Estudos sobre Desenvolvimento Econômico e Social da UFOP (Nupedes). O projeto é coordenado pela professora do Departamento de Ciências Sociais da universidade, Marisa Singulano, e tem o principal objetivo de atuar na melhoria das condições de vida das famílias locais, especialmente das mulheres.


A iniciativa atua diretamente na criação de uma cozinha comunitária no Assentamento. O espaço vai ser utilizado na fabricação de doces, biscoitos e outros produtos agroecológicos com base em receitas tradicionais da região, a fim de comercializar esses itens para a população, dentro e fora da comunidade. Gerenciada pela Associação de Cooperação Agrícola Cafundão, a cozinha comunitária e industrial possui como público-alvo as mulheres, com aproximadamente 30 produtoras locais trabalhando na ação, segundo Marisa Singulano. Desse modo, a partir do fornecimento da infraestrutura e dos equipamentos, a comercialização de alimentos saudáveis e sustentáveis poderá ser potencializada na região.


Quando Marisa iniciou a sua participação no projeto, em 2015, já na sua primeira reunião percebeu a exclusão das mulheres dos ambientes de tomada de decisão da Associação. Na sala onde aconteceu o encontro só havia homens. As representantes que hoje têm um maior protagonismo de liderança no local, como a Dona Dulce, estavam assistindo a reunião pelas janelas, inclusive sua filha, Regiane Aparecida (ex-presidente da Associação de Cooperação Agrícola do Cafundão). 


A professora conta que achou aquela cena de exclusão estranha e, então, convidou aquelas mulheres que acompanhavam tudo pela janela para entrarem no local. Na época, o presidente da Associação não gostou muito. Quando questionado sobre o motivo, segundo Marisa, ele respondeu que a reunião era para tratar da questão do trabalho e que mulher não trabalha. Até aquele momento, as mulheres realizavam suas operações produtivas em suas próprias casas devido à falta de um espaço comunitário e qualificado. 


Com a participação cada vez mais efetiva nas reuniões, essas mulheres começaram a ocupar diversos cargos no grupo, gerando renda a partir do aumento da comercialização das hortaliças e quitandas. Dona Dulce, por exemplo, pôde realizar uma reforma na casa através do dinheiro que ganhou com a venda das verduras. Anteriormente, ela só plantava para consumo pessoal e agora ela consegue comercializar. 


Geração de renda e o protagonismo feminino:

Roseli Borges ainda era criança quando percebeu que era na cozinha que as mulheres trabalhavam dia após dia. Ali, na sua casa, ou nas casas da vizinhança, era do fogão à lenha que saía o alimento e o trabalho que dava sustento nutritivo aos grupos de homens, mulheres e crianças. Em visita ao Assentamento, a equipe do Jornal Lampião conversou com Roseli e outras quatro mulheres da comunidade para entender a importância da construção de um espaço qualificado e coletivo de trabalho.


“Como a gente fica o tempo todo no fogão é uma honra pra gente estar aqui vendo a construção da cozinha, porque agora a gente vai estar no fogão, mas com a nossa renda, né?”, explica Claudiane do Carmo, de 30 anos. Integrante da Associação de Cooperação Agrícola do Cafundão, Claudiane enfatiza que muitas mulheres da comunidade possuem as habilidades para fazer os produtos, mas faltava um lugar para a produção coletiva. Agora, as produtoras da região do Assentamento vão poder trabalhar em uma cozinha coletiva com fogão industrial. ”Então vai ser uma melhoria que a gente não tem, né? Um complemento que a gente possa estar ampliada aqui, né? Nós temos nosso valor, mas cada dia mais nós estamos sendo valorizadas aqui, através dessa cozinha, dessa obra”. 


Claudiane espera que essa melhoria possibilite uma ampliação na atuação das produtoras do Cafundão. “É muito importante também que a gente vai  gerar emprego, né? Que não precisa de ninguém sair daqui para poder trabalhar na cidade”, conclui a agricultora.

Para todos verem: A imagem retrata cinco mulheres sorrindo em um cenário rural, com montanhas ao fundo. Elas estão alinhadas e abraçadas de lado, com roupas coloridas.
Mulheres associadas à cozinha comunitária inaugurada no Assentamento do Cafundão. | Foto: Pedro Vieira

Claudiane do Carmo também destaca a possibilidade de ver seus filhos e netos trabalhando com a agricultura familiar. Ela dá o exemplo do seu Adão - morador da localidade -, que possui o auxílio dos parentes na fabricação de panelas de pedra sabão. O sonho coletivo na realização da obra abrange desde a história dessa população até a luta comunitária pela qualidade de vida dos residentes que, muitas vezes, precisam ir para outras cidades para trabalhar. 


Roseli Borges ressalta como  o desenvolvimento econômico deles é prejudicado, já que a força de trabalho dessas pessoas giram a economia das cidades vizinhas e não a do próprio assentamento. “Não é simplesmente uma cozinha que foi feita, nós vamos cozinhar aqui, mas isso gera um lucro para a comunidade no geral, né?”. Claudiane complementa que essa construção também vai valorizar o Assentamento, ao passo que as pessoas que, anteriormente, precisavam se deslocar para a cidade para trabalhar, vão poder fazer renda própria e movimentar a economia baseada em uma circulação sustentável de mercadorias.


Tendo em vista que o objetivo da cozinha coletiva é criar uma produção agroecológica baseada na produção de quitandas, verduras e legumes, é importante ressaltar a necessidade da geração de emprego na comunidade a fim de fomentar um sistema sustentável de produção e de distribuição. “Elas vão adquirir os insumos para a fábrica da própria comunidade daqui do entorno. Então, elas vão comprar os ovos de quem tá aqui, o leite e o fubá que já é produzido aqui na região”, ressalta a professora Marisa Singulano. 


Cafundão, as políticas públicas e as especializações

As famílias do Assentamento Cafundão são responsáveis por fornecer alimentos para as escolas da rede pública do distrito. Por ser o único Assentamento de Reforma Agrária da região, o assentamento possui prioridade nessa oferta, de acordo com a Lei Federal 11.947, de 2009 - que também prioriza as comunidades tradicionais indígenas, as comunidades quilombolas e os grupos formais e informais de mulheres. A lei garante a aquisição de 30% de gêneros alimentícios vindos da agricultura familiar por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). De acordo com a lei vigente, através desse repasse, o PNAE pretende atuar no crescimento e desenvolvimento da aprendizagem escolar e na formação de hábitos alimentares saudáveis dos estudantes. Essas ações acontecem mediante o estímulo da educação alimentar e do fornecimento de refeições que cubram suas necessidades nutricionais.


Após uma pesquisa realizada por professoras e aluno da UFOP, “Efeitos da pandemia de Covid-19 sobre o acesso aos canais de comercialização dos agricultores familiares: estudo qualitativo no município de Mariana - MG”, foi constatado que a renda familiar dos moradores do Assentamento do Cafundão dependia em grande parte dos homens. Enquanto isso, as mulheres realizavam atividades que não davam o retorno financeiro necessário para a complementação da renda das famílias. De acordo com a pesquisa, a pandemia de Covid-19 comprometeu a distribuição de alimentos para as escolas, fazendo com que a renda delas ficasse mais comprometida. Além disso, o Assentamento carecia de uma estrutura técnica e industrial para o fornecimento de produtos padronizados, que pudessem competir no mercado da região.

Para todos verem: Um evento ao ar livre com diversas pessoas sentadas sob uma tenda branca. A plateia acompanha atentamente uma apresentação, com algumas pessoas de pé ao lado, próximas a uma mesa de apoio. Ao fundo, o cenário rural é composto por vegetação e montanhas, além de uma área de terra em obras.
Celebração que marca o início da construção da cozinha no Assentamento do Cafundão. | Foto: Pedro Vieira

Apesar das integrantes do Assentamento já possuírem o conhecimento e a técnica necessários no processo de produção das quitandas e hortaliças, houve a iniciativa do projeto de ofertar cursos de especialização. Essa capacitação ocorre com o objetivo de ampliar o conhecimento histórico que essas mulheres mantêm por gerações, que hoje é parte essencial na vida coletiva da comunidade.


Roseli Borges destaca que, para elas, é muito importante o conhecimento que está sendo adquirido com os cursos. “Teve um projeto na casa da dona Dulce pra gente aprender a fazer a merenda, né? Eu participei. Igual o curso que teve com as galinhas, pra gente aprender a mexer com elas. Teve também o curso sobre plantio nas hortas.” A integrante da Associação ainda acrescenta que essa oportunidade traz diversos benefícios para elas. “Eu aprendi bastante, então quando a gente tem conhecimento a gente vai mais longe”, afirma.


As capacitações abrangem rotulagem de alimentos, montagem de tabela nutricional, elaboração de rótulos e boas práticas na manipulação de alimentos. O ensino dessas técnicas possui o objetivo de garantir a produção dentro do que é preconizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), para que haja maior segurança na comercialização e consumo desses produtos.


As dificuldades enfrentadas e a espera das novas mudanças

Para além das dificuldades da falta de infraestrutura que essas produtoras enfrentaram por todos esses anos, a expectativa é alta em relação à finalização da obra, que está prevista para o final do ano. A capacitação terá início efetivamente quando as atividades começarem na cozinha. E, apesar desse projeto já ter saído do papel, a Associação de Reforma Agrária do Cafundão ainda lida com diversos empecilhos na questão da produção das hortaliças e quitandas.


Assim, existem outras demandas que ainda carecem de atenção para a geração de uma dinâmica econômica efetiva para essas produtoras. Dulcineia relata as dificuldades quanto às condições climáticas, que nem sempre são favoráveis para o plantio da horta, como as chuvas e o frio intenso, que podem influenciar negativamente na qualidade das hortaliças, fazendo com que percam muitas verduras.


Dona Dulce comenta sobre essa dificuldade: “A gente pode ver isso aí, como a cobertura da horta. Até eu tava pensando naquele negocinho de resfriar, uma estufa. Porque, às vezes, chega o tempo chuvoso e a gente devia ter a cobertura para tampar a horta. A gente perde muita verdura por conta da chuva e a construção da estufa seria um projeto legal”, conclui.


Por mais que outros projetos estejam ainda no plano das ideias, existe a vontade por parte das moradoras de equipar toda a estrutura de produção, como a construção de uma estufa e capacitação para o controle de pragas nas hortas. Claudineia espera que venham outros projetos além da cozinha. “Que não venha só a cozinha, que venha mais coisas novas. Aqui, tem muitos outros projetos”.




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