Crítica | A persistência da memória da ditadura como forma de resistência
- Sophia Helena Ribeiro
- 27 de fev.
- 4 min de leitura
Atualizado: 11 de mar.

Quem fala de livro na época do Oscar? É, provavelmente, a pergunta que você, leitor ou leitora, deve estar se fazendo agora. Porém, eu gostaria de argumentar que “Ainda Estou Aqui”, representante do Brasil na premiação este ano, antes de ser filme, foi livro. Marcelo Rubens Paiva, autor de “Feliz ano velho” (1982), escreveu a obra após a instalação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), em 2011. A Comissão buscou apurar violações aos direitos humanos praticadas especialmente durante os 21 anos de duração da ditadura militar no Brasil.
Neste livro, ele honra esse local da memória da luta de sua mãe, Eunice Paiva, e demarca a violência da ditadura durante esse episódio traumático na vida de nosso país, em que houveram torturas, detenções ilegais e/ou arbitrárias, execuções, perseguição política e ocultação de cadáveres, segundo relatório da Comissão da Verdade. O autor, mesmo lidando com as memórias de sua infância, cria uma emocionante amálgama de luta e esperança descrevendo o que ocorreu nesse período com o deputado federal Rubens Paiva, seu pai. É muito simbólico que o livro nasça de um momento de alívio para os familiares, em 2012, quando receberam a certidão de óbito de Rubens. Antes disso, era desconhecido o paradeiro do pai, que foi levado de casa a mando dos militares, e posteriormente assassinado, em 1971. Acredito que muito do conteúdo da obra venha desse sentimento de apresentar os feitos de Eunice, assim como demonstrar que a luta dela não foi em vão. Acredito que receber esse documento, uma certidão de óbito, seja um pesadelo para qualquer pessoa. No entanto, transforma-se em esperança ao trazer a certeza de que, em algum momento, a verdade sobre o destino dos presos políticos da ditadura virá à tona. O livro é, portanto, um trabalho de excelência que nos ajuda a rememorar o que nunca podemos esquecer: Ditadura nunca mais!
Além da leitura sobre a família Paiva — uma personagem central da história — lemos também sobre o Brasil. O livro foge de muito do que já foi produzido sobre a ditadura no mercado editorial, e ouso dizer que já era um clássico no momento de sua concepção. A partir da data de seu lançamento, se imortalizou. É uma obra-prima, na acepção da palavra. O retrato construído a partir dessa viagem no tempo (um tempo não tão distante do nosso, de agora), começa desde os primeiros parágrafos do livro. O autor, ao realizar uma regressão à infância no começo do texto, cria uma metáfora poderosa para a construção dessa narrativa que luta pela persistência da memória, principalmente quando pensamos no quadro clínico de sua mãe, Eunice Paiva. Essa imagem da persistência da memória, dentre muitas, reforça esse espaço que a arte tem em não nos permitir o esquecimento. Acho importante refletir também sobre esse teor surrealista que a imagem da ditadura pode nos remeter. Quando pesquisamos sobre esse período, ficamos horrorizados com a barbárie praticada. Por outro lado, é importante lembrar que não foram monstros que praticavam aqueles atos violentos, são humanos, militares, muitos ainda vivos. Muitos, senão todos, saíram impunes.
Segundo Mariana Filgueiras, em entrevista realizada com Marcelo Rubens Paiva, “o título do livro seria um remonte da frase que a mãe parece querer dizer a cada confusão mental”. Eunice Paiva desenvolveu Alzheimer após anos de enfrentamento à censura e defesa dos direitos humanos, mas tem sua importância abrilhantada no episódio histórico. “Ela atuou muito mais contra a ditadura do que meu pai”, afirma Marcelo na entrevista citada. O autor do livro, ao ver o levante da extrema direita no Brasil, em 2015, trouxe urgência à questão política, marcando a importância de não voltarmos àquele passado. Passeatas com a ânsia da volta do regime militar foram o que o levaram a escrever, e o que entregou, a nós, brasileiros, “Ainda estou aqui”.

Ao tratar da doença da mãe, o autor traz uma sensibilidade ímpar ao livro. Porém, vê-se muito pouco da relação entre Marcelo e seu pai, já que é parte ínfima de sua memória, por causa da ditadura, que destruiu esse laço. O que mais me surpreende no livro é a construção de uma memória familiar que está profundamente enraizada na história do Brasil. A narrativa não tem afobações, excessos ou desrespeitos. Acredito que até se reprime um pouco em contar sobre a própria vida, dando destaque aos pais, exaltando-os a esse patamar heroico. Penso que, para um leitor menos atento, os vai-e-vens temporais podem trazer um estranhamento, mas entendo que isso adiciona muito ao conteúdo do texto. Apesar da narrativa não linear, existe uma conversa criada pelo autor, que aproxima o leitor da obra
“O brasileiro hoje é um povo órfão”
Segundo matéria da BBC, além de Rubens Paiva, outras 413 pessoas foram consideradas mortas e/ou desaparecidas durante a ditadura militar, e receberam a nova certidão de óbito graças ao trabalho da Comissão Nacional da Verdade. Isso ocorreu a partir de uma determinação de 2024 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Diante disso, me questiono como, ainda atualmente, existem pessoas que apoiam a volta da ditadura militar no Brasil, mesmo que diversas crianças tenham ficado sem pai ou mãe, e que muitas famílias tenham sido separadas de seus entes queridos. Essas feridas ainda estão abertas, principalmente no imaginário de alguns brasileiros.
Agora a expectativa é ver um filme brasileiro ganhar o Oscar, em uma disputa páreo a páreo com produções de Hollywood. O livro já tem data para publicação nos Estados Unidos e no Reino Unido, em 2026, e a obra vai ganhar uma sequência em junho de 2025, pela editora Alfaguara, intitulada “O Novo Agora”.
Ler para não esquecer | Recomendações da editora:
Como enfrentar um ditador (2022), Maria Ressa;
Holocausto Brasileiro (2013), Daniela Arbex;
Crime Sem Castigo: Como os Militares Mataram Rubens Paiva (2025), Juliana Dal Piva;
As Meninas (1973), Lygia Fagundes Telles;
Dias e Noites de Amor e de Guerra (1978), Eduardo Galeano;
Aracy de Carvalho e o resgate de judeus: Trocando a Alemanha nazista pelo Brasil (2011), Mônica Raisa Schpun.
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