A tradição doceira de São Bartolomeu: a goiabada e seu legado cultural
- Carlos Daniel e Vitória Lana
- 21 de mar.
- 6 min de leitura
A Festa da Goiaba está em sua 28ª edição, um evento tradicional que celebra o fruto emblemático do distrito.
Em São Bartolomeu, distrito de Ouro Preto, a Festa da Goiaba é uma celebração da história e da identidade de um povo. Realizada desde 1993, o evento é um dos maiores símbolos culturais da região e, em 2025, acontecerá nos dias 4, 5 e 6 de abril. A festa, que já faz parte do calendário da cidade, é um momento de encontro para as famílias e a comunidade, além de atrair turistas em busca de uma experiência no interior de Minas Gerais.
Em meio a esse contexto de celebração da tradição, alguns dos principais produtores de doces de goiaba de São Bartolomeu, como Pia Márcia, conhecida como "Vovó Pia", e Andrea Fortes, doceira local, têm se dedicado a manter viva essa prática secular passada entre gerações.

A Tradição Doceira

Para muitas famílias, a produção dos doces não é apenas uma atividade econômica. Pia Guerra, de 65 anos, doceira famosa no distrito, conta que a arte de fazer doces foi passada a ela quando tinha 20 anos de idade, por Dona Maria de João da Costa, uma das grandes doceiras da região. Pia, com 45 anos de experiência, busca, junto de sua família, dar continuidade aos modos tradicionais de fazer a goiabada.
"Quando vim para São Bartolomeu, eu e meu companheiro buscávamos qualidade de vida. Logo, abracei a tradição doceira local. Meus filhos e netos ajudam, e com isso, conseguimos criar a marca Vovó Pia, que é um reflexo da história e do amor por essa tradição", conta Pia, com um sorriso no rosto.
O local de confecção dos doces é um espaço em frente à sua casa. Lá, ela possui uma fornalha que é abastecida com eucaliptos, que geram chamas usadas para aquecer o tacho de cobre e cozinhar as cascas das goiabas. Durante todo esse processo, a doceira não abre mão de usar utensílios tradicionais, como tacho de cobre, pá de madeira e fornalha a lenha. Para ela, os doces de São Bartolomeu têm características próprias em relação à produção de outros lugares e acredita que, ao substituir os materiais tradicionais por outros mais modernos, pode-se interferir no sabor final da goiabada. Todo esse conhecimento é passado para seus filhos produtores, que, ano após ano, ajudam a mãe a mexer o tacho. “A produção de doce exige um esforço físico grande. Colher goiaba, mexer tacho. Então, quando a gente chega numa certa idade, a gente não dá mais conta de produzir. Nós agora damos conta de contar as histórias e passar o nosso saber para as novas gerações”, diz ela.
Andrea Fortes, de 51 anos, é doceira da comunidade e filha de Vicente Fortes, popularmente conhecido como Tijolo, um dos mais antigos produtores de goiabada cascão de São Bartolomeu. Diferente de Pia, Andrea teve contato com os modos de fazer o doce ainda na infância. "Eu aprendi a fazer doce desde criança, férias, feriado, tudo eu estava lá ajudando a fazer doce. Sei fazer noventa por cento dos doces”, compartilha ela. Andrea aprendeu a fazer os doces com sua mãe, Cerma Fortes, mantendo assim o legado da matriarca e preservando a tradição familiar. Além do valor econômico, os doces têm valor sentimental para Andrea, que se sente orgulhosa por fazer parte da terceira geração de doceiros da família Fortes. Ela é natural de São Bartolomeu, mas atualmente mora em Passagem de Mariana e conta que, semanalmente, vai até o distrito para trabalhar na loja da família.
A Perspectiva dos Jovens sobre a Tradição
Luiz Fortes, de 29 anos, é neto do doceiro Tijolo, e vê a importância da tradição como uma forma de valorizar a identidade do distrito. Para ele, a goiabada é um símbolo cultural forte, essencial para a história local. Porém, ele reconhece os desafios de dar continuidade a essa expressão cultural, especialmente devido ao trabalho cansativo envolvido na produção. Ele destaca que, apesar de entender a importância do legado, os jovens optam por outros caminhos em busca de uma vida menos desgastante. O trabalho, que exige o uso de ferramentas tradicionais, como o tacho de cobre e a fornalha a lenha, é exaustivo, mas Luiz não acredita que a solução seja abandonar completamente os métodos tradicionais. Ele vê a tecnologia como uma aliada, desde que não comprometa o sabor e a essência do produto. "A tecnologia ajuda, mas tem que tomar cuidado. Não pode mudar o sabor. Hoje em dia, eu não vou rachar lenha, vou usar uma motosserra, mas alguns processos precisam ser preservados para não perder a qualidade", explica ele. Para Luiz, as inovações podem facilitar o trabalho físico, sem necessariamente prejudicar a tradição.

Por outro lado, Mateus Guerra, de 38 anos, também doceiro e filho de Pia Márcia, compartilha uma visão com um foco mais profundo na questão da continuidade. Para Mateus, o legado doceiro é mais do que uma profissão; é uma parte essencial de sua identidade pessoal e familiar. Ele lembra com carinho de sua infância, ajudando na produção dos doces, o que lhe proporciona uma memória afetiva. No entanto, ele é realista quanto aos desafios da continuidade: "Se a gente não continuar, vai acabar", alerta. Mateus também reconhece a importância da festa para atrair mais visibilidade e até engajar os jovens, mas enfatiza que a preservação da tradição depende da dedicação de pessoas que entendam que o valor da goiabada vai além do lucro imediato. "Se a pessoa vier com a ideia de trabalhar para manter a tradição e não só para ganhar dinheiro, pode dar certo.
Caso contrário, acaba se tornando uma indústria e perde a essência", observa. Para ele, é necessário encontrar um equilíbrio entre manter os métodos tradicionais e adaptar-se à realidade econômica atual, sem perder o que torna a goiabada de São Bartolomeu tão especial.

A Festa da Goiaba
Segundo a professora de turismo, Alissandra de Carvalho, a produção de doces artesanais em São Bartolomeu tem uma longa história, que remonta pelo menos a dois séculos. Inicialmente, os moradores da região produziam marmelada a partir do marmelo, mas, na década de 1940, uma praga dizimou a produção desse fruto, levando à substituição do marmelo pela goiaba. A produção de doces de goiaba, que já era tradicional, passou a ganhar destaque a partir da década de 1990, impulsionada pelo aumento do turismo em Ouro Preto. Em 2008, a produção de doces de São Bartolomeu foi registrada como Patrimônio Imaterial de Ouro Preto pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural e Natural (COMPATRI). Este título foi revalidado em 2018, reforçando a importância da preservação dessa tradição culinária e garantindo que os doces continuem sendo feitos de maneira artesanal. A Festa da Goiaba, que teve sua primeira edição em 1993, foi idealizada pelo artista plástico Gelson Cortes, com o objetivo de valorizar a tradição local. Essa celebração acontece anualmente após a colheita do fruto, geralmente em abril, e se consolidou como uma importante manifestação cultural e econômica da região.
Para Rama Guerra, de 40 anos, filho de Pia e cozinheiro, a festa é um momento essencial tanto para a economia quanto para a visibilidade do distrito. Ele acredita que esse evento fortalece o contato entre os moradores e os visitantes, promovendo trocas culturais e incentivando a profissionalização na gastronomia. “Através da cultura e da arte, vai abrindo um pouco a mente das pessoas”, reflete. Além dos produtores locais, a festa atrai visitantes fiéis, como Érika Santos, de 45 anos, moradora de Ouro Preto, que frequenta o evento há quatro anos consecutivos.
Para ela, a gastronomia foi o que mais chamou atenção, destacando-se pela forte presença do regionalismo e pela qualidade dos produtos. “Achei a qualidade do doce excepcional, o melhor que já comi”, afirma. Érica também percebe o esforço da comunidade em prol da tradição, oferecendo aos visitantes uma experiência única. “Acho excelente, já que é uma festa acolhedora e as produções encantam a todos.
Além disso, favorece economicamente os moradores e culturalmente toda a região”, acrescenta. A visitante destaca ainda que o evento fortalece a visibilidade dos talentos locais. Para ela, a Festa da Goiaba não é apenas uma celebração, mas um reflexo da identidade e do acolhimento da comunidade. “Com certeza, o aconchego do local, a qualidade dos doces e a estrutura da festa fazem toda a diferença”, conclui.
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