Crônica | Entre o luto e a esperança
- João Vítor Souza
- 16 de mar.
- 5 min de leitura
Sobre perdas, resistências e a necessidade de reconstruir diante da destruição

Transformações na vida são, sem dúvida, necessárias. Um processo tão comum, que frequentemente passa despercebido, mas que nunca deixa de carregar consigo um certo incômodo, um frio na barriga. E pouco importa se são simples ou complexas, planejadas ou abruptas: as transformações provocam inquietação e desassossego.
Ainda que quase dez anos depois, o crime do rompimento da barragem do Fundão é uma dessas transformações abruptas e devastadoras, que continua a reverberar todos os dias — e não só no cinco de novembro. Fico pensando em como foram, e principalmente como estão sendo essas mudanças para quem foi atingido, sem aviso e de forma arrasadora.
Conforme texto publicado no site jornalístico A Sirene, canal de comunicação que reflete a realidade das pessoas atingidas pelo rompimento, os rejeitos da barragem de Fundão atingiram Bento Rodrigues em questão de minutos. A destruição seguiu para Paracatu de Baixo, manchando o Rio Gualaxo com sua toxicidade e atravessando também a comunidade quilombola de Gesteira. “Duas semanas foram o suficiente para acabar com comunidades, causar perdas materiais e imateriais, adoecimento físico e mental, além de danos na biodiversidade.”
Um dia comum se transformou em uma tragédia que redefiniu e destruiu vidas. O cheiro da lama tomou o lugar de todos os outros, e as texturas de tudo que lhes era familiar deram espaço às memórias de uma vida que ficou submersa. Cada canto, cada pedaço de terra, antes cheio de vida e histórias, foi substituído por um silêncio carregado de luto. Silêncio esse que gritava e trazia consigo uma sensação de algo estranho. Mas o que ou quem é estranho agora? O lugar que foi destruído ou as pessoas que tentam reconstruí-lo?
Hoje são muitos os estranhos em suas próprias vidas. Adaptar-se às novas casas, aos novos espaços e às rotinas que acabaram se impondo é um desafio constante. Cada dia é uma tentativa de construir novamente a vida, que esbarra na saudade e no desamparo. O confronto com essa realidade é um teste, sabe-se deus de quais tipos de sentimento. Resiliência? Indignação? Injustiça? Negação? Existem tantos. A vida que antes havia, e foi construída com o suor e amor de quem ali estava, se transforma de forma abrupta, deixando apenas lembranças, que agora envolvem dor e nostalgia.
Em outubro de 2016, o MPF denunciou 21 pessoas por homicídio doloso no rompimento da barragem, de um total de 26 acusados por variados crimes, incluindo 4 pessoas jurídicas. As quatro empresas denunciadas criminalmente foram a mineradora Samarco, responsável pela barragem; suas acionistas Vale e BHP Billiton; e a VogBR, empresa que assinou laudo atestando a estabilidade da estrutura. Os procuradores disseram que a Samarco tinha consciência dos riscos de um rompimento, mas a ganância na busca por lucro
levou à tragédia.
Segundo o procurador Eduardo de Oliveira, “além de 19 pessoas assassinadas, outras quatro sofreram comprovadamente lesões corporais graves. Outras diversas vítimas não tiveram suas lesões comprovadas. Os homicídios foram cometidos por motivo torpe e por isso foram considerados qualificados, o que pode resultar numa pena maior, já que ficou comprovado que a causa foi a ganância da Samarco e suas acionistas.”
Cabe aqui a pergunta: valeu a pena ignorar os sinais de perigo, o preço de um progresso negligente? Quando as prioridades se voltam para o lucro, quem paga a conta é sempre o mais vulnerável. Os bilhões recebidos pelas empresas mineradoras tiveram e têm um preço, e aqui ele foi pago com vidas, histórias… e sonhos. Não é apenas sobre dinheiro, mas sobre dignidade, sobre a saúde de um povo e do lugar que vivem. A perda de si é tangível quando tudo aquilo que se tinha como referência desaparece.

Na solidão das mudanças, a força que emana do coletivo é essencial. As comunidades atingidas mostram que resistir é lutar, não apenas por direitos e por voz, ainda que “aos gritos”, mas também por preservar memórias e o sentido de pertencimento. Esse mesmo espírito se manifesta na organização da Comissão de Atingidos pela Barragem de Fundão (CABF), que surgiu após o crime de Mariana.
Ela reuniu representantes das comunidades afetadas, transformando o vazio deixado pela perda em uma rede de apoio e mobilização. Em encontros regulares e audiências públicas, como as realizadas na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), os atingidos converteram a dor em ação, exigindo reparação e justiça. Além disso, a comissão deliberou pela contratação de assessorias técnicas independentes, como a escolha da Cáritas Brasileira, para garantir que os impactos fossem avaliados de forma imparcial e que cada história e dor fossem ouvidas.
Assim, o compartilhamento de experiências e a construção coletiva de uma memória ativa se traduzem em um fio invisível que une os sobreviventes, permitindo que a solidariedade se transforme num instrumento de resistência e na reestruturação do futuro.
Bento, Paracatu e tantos outros lugares marcados pelo crime lembram que as mudanças que deveriam ser para crescimento foram impostas como destruição. A vida que se tenta levar depois do rompimento é carregada de dores e descompassos, contrastando entre o que foi tirado e o que é oferecido. Tudo o que é reconstruído carrega as marcas do que foi perdido, como se nunca pudesse esquecer. E não vai.
As comunidades afetadas pelo rompimento da barragem demonstram que, mais do que temer as mudanças, é necessário enfrentá-las com coragem. Elas têm se dedicado a processos contínuos de resistência, reconstrução e reconciliação com as perdas sofridas.
As empresas responsáveis pelo desastre — Samarco, Vale e BHP Billiton — retomaram suas atividades nos anos subsequentes. A Samarco, por exemplo, reiniciou suas operações em 2020, implementando novos processos de disposição de rejeitos com o intuito de garantir uma retomada sustentável e segura. No site, a assessoria da empresa afirma que intensificou o monitoramento das estruturas de disposição de rejeitos, com o uso de tecnologias avançadas e auditorias frequentes.
Em 25 de outubro de 2024, as mineradoras BHP e Vale assinaram um acordo de R$ 170 bilhões para reparação dos danos causados pelo desastre-crime em Mariana. As mineradoras repassarão R$ 100 bilhões à União e aos governos de Minas Gerais e do Espírito Santo.
Todos esses recursos serão somados a R$ 38 bilhões que já foram aplicados pelas empresas, por meio da Fundação Renova, como medidas reparatórias e compensatórias; e a R$ 32 bilhões para finalizar ações de reparação já iniciadas, como o reassentamento das comunidades mineiras de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, e outras medidas de recuperação ambiental. Contudo, persistem debates sobre a suficiência dessas medidas, e ações judiciais adicionais estão em andamento, incluindo processos internacionais.
No entanto, a retomada das atividades mineradoras não pode ser vista apenas como um retorno aos lucros: é imperativo que a justiça seja mais do que uma promessa inalcançável. Ela deve servir como base para que novos recomeços sejam possíveis, permitindo que os atingidos reconstruam suas vidas, mesmo que o futuro nunca mais seja como antes.
Que essas histórias sejam sempre contadas, para preservar as memórias e registrar as lições, nunca esquecidas. Assim como as mudanças são inevitáveis, também deve ser inevitável a luta (e, por que não a esperança?) por um mundo onde elas ocorram sem destruir tudo à sua volta.
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