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Izabela Gonçalves e Livia Salles

O teatro comunitário resiste e persiste em Mariana

A oitava edição do Festeco, Festival organizado e protagonizado por estudantes de escola pública de Mariana, impulsiona o acesso às artes cênicas no município


#Paratodosverem: grupo de jovens posando em um palco de teatro. Eles estão em várias posições, alguns de pé, outros sentados e alguns agachados ou deitados à frente. O grupo é diverso, com expressões animadas e descontraídas. O ambiente é escuro ao fundo, com iluminação suave destacando as pessoas no palco. O chão de madeira do palco também é visível e ao fundo há cortinas pretas.
Grupo de estudantes do 3º ano do Ensino Médio da Escola João Ramos Filho após apresentação da peça “Hasta Siempre Latino América” | Foto: Izabela Gonçalves

O primeiro ato do estudante do terceiro ano do ensino médio da Escola Estadual João Ramos Filho do bairro Cabanas, João Paulo Tadeu, 18, começou antes da noite de estreia no Festival de Teatro Comunitário de Mariana (Festeco). Ele escreveu uma cena da peça apresentada na noite de abertura do Festival durante uma aula com a professora Juliana de Conti. “Eu só percebi que estava fazendo alguma coisa diferente depois que estava todo mundo ensaiando o texto que eu escrevi. É muito difícil escrever e depois atuar, porque o pessoal da produção sempre vai perguntar alguma coisa sobre figurino, cenário”, conta João Paulo.


#Paratodosverem: Cena de teatro em um palco com iluminação azulada. Três atores estão em cena. À esquerda, um ator veste uma boina e roupas escuras, com a mão no queixo em uma pose pensativa. No centro, uma atriz vestida de branco está ao fundo, atrás de uma mesa cirúrgica. À direita, um outro ator, de roupas claras, interage com o ator à esquerda.
João Paulo, caracterizado como o militante Matias (à esq.), em cena decisiva de confronto do seu personagem com a polícia uruguaia | Foto: Lívia Salles

“Hasta Siempre Latino América” foi o espetáculo de estreia da fase estudantil na noite do dia 23 de setembro, no Cine Teatro Municipal, interpretado pelos alunos da João Ramos Filho. A peça, escrita e protagonizada por João Paulo, conta a história de amor entre Clara e Matias, um guerrilheiro aliado de Che Guevara. O casal se conhece no Uruguai e foge para o Brasil em plena Ditadura Militar. O autor da peça se considera tímido, mas para subir no palco enfrentou seus desafios e protagonizou as cenas dramáticas da trama. “Depois que comecei a atuar fiquei mais corajoso, tenho menos medo para interagir com as pessoas”, diz. 



Micaelle de Souza Silva, 18, também é estudante do ensino médio na mesma escola e deu vida à personagem Clara na peça. A primeira vez que participou do Festeco foi em 2021, durante a pandemia, de forma online. Apesar do desafio, ela conta que atuar faz parte de quem ela é e de quem quer ser no futuro. Micaelle enxerga nessa arte uma possibilidade de mostrar, de maneira encenada, problemas reais da sociedade e, de alguma forma, contribuir para uma mudança social. 


Veja a seguir a fala de Micaelle sobre o momento em que se encantou com o teatro e trechos de sua atuação na peça “Hasta Siempre Latino América”:



O teatro comunitário, segundo o professor Ernesto Valença do Departamento de Artes Cênicas da Universidade Federal de Ouro Preto- UFOP, é classificado como o teatro que é feito junto com a comunidade: seja um bairro, uma associação, ou uma escola, como é o caso da iniciativa coordenada pela professora Juliana de Conti na Escola Estadual João Ramos Filho, no Bairro Cabanas. 


Ernesto destaca que “o intuito do teatro comunitário não é fazer parte de um circuito teatral, é um teatro que está preocupado com pautas locais e é voltado para o mesmo grupo de pessoas de quem está produzindo o teatro”. Ele acrescenta que as temáticas apresentadas nas peças podem ser contextos políticos e sociais em diálogo com a realidade vivida por aquelas comunidades. “Mais que um teatro político é um teatro que tenta investigar a realidade no qual ele se encontra”, conclui o professor.


O FESTECO 

O Festival de Teatro Comunitário acontece anualmente em Mariana (MG). O evento, que está em sua oitava edição, é organizado pela Associação Cultural Caminho do Sol, coordenada pela professora Juliana de Conti. Entre os dias 22 e 29 de setembro, diversos espetáculos teatrais, todos com entrada gratuita, foram apresentados pela cidade, por companhias mineiras de Mariana, Ouro Preto, Conselheiro Lafaiete, Pará de Minas, Patos de Minas, Juiz de Fora, Belo Horizonte, Uberaba, Governador Valadares, Queluzito. De outros estados brasileiros, Mariana recebeu grupos de Jaraguá do Sul (SC), Santa Maria (RS), Brasília (DF), Bananal (SP), Guarulhos (SP), Rio de Janeiro (RJ), Nova Iguaçu (RJ) e Vitória de Santo Antão (PE), além da presença internacional de representantes da Venezuela. 


Foram realizados 40 espetáculos distribuídos em duas fases: estudantil e fase nacional. A fase estudantil regional contou com a participação de 400 estudantes, que nesta edição, foram responsáveis por quinze apresentações. Já a fase nacional contou 25 apresentações, dentre elas: teatro, circo, dança, música e oficinas.  


A cada edição o Festival homenageia uma personalidade importante para o teatro brasileiro. Desta vez, o marianense Afrânio Geraldo da Silva foi o escolhido. Aos 61 anos e com a vida dedicada ao teatro comunitário, o fundador do grupo Raízes do Oriente teve seu  primeiro encontro com as artes cênicas ainda na infância, participando de gincanas na escola. 


#Paratodosverem: Foto de um homem de pele negra e cabelos grisalhos, com óculos de grau e vestindo uma camisa preta com colete escuro. Ele segura um microfone próximo ao rosto e faz um gesto com a mão, como se estivesse explicando algo ou fazendo um discurso. Ao fundo, uma cortina vermelha de teatro completa o cenário.
Afrânio, ao ser homenageado no Festival, fala sobre a importância do Festeco para “plantar a semente” e promover a arte na vida dos jovens marianenses | Foto: Livia Salles

No ano de 1974, no Cine Cruzeiro, de Passagem de Mariana, participou da sua primeira peça teatral e, de lá pra cá, diversos espetáculos foram escritos, dirigidos e encenados por ele. Afrânio é um grande incentivador de crianças e adolescentes da sua comunidade  a se envolverem com o teatro, por isso vê no Festeco uma oportunidade de promover o desenvolvimento artístico dos jovens locais. “Nas artes cênicas, a pessoa vai se autodescobrindo. Ela se pergunta: ‘qual minha vocação?’ Tem aqueles que gostam de fazer as pessoas sorrirem, enquanto outros preferem contar alguns dramas. Então as pessoas vão se identificando e se tornando mais artistas”, fala.


“Cada dia da nossa vida nós fazemos a nossa peça de teatro. A nossa vida é um palco. E, à medida que vamos colocando mais amor no que fazemos, a gente cria o grande espetáculo da vida” - Afrânio Geraldo da Silva

Em entrevista ao Jornal Lampião, Afrânio fala sobre a arte e como ela pode mudar a vida de quem descobre essa vocação desde cedo. Ouça a seguir:




Conhecer o mundo pelo teatro 

O teatro comunitário de Mariana é uma oportunidade dos  jovens locais descobrirem mais sobre essa arte e, também, sobre si mesmos. Randora Rânia da Silva, 21, sempre teve vontade de atuar, mas achava que esse sonho só poderia ser realizado se saísse do interior e fosse para a capital, Belo Horizonte. Há aproximadamente seis meses, ela conheceu a Companhia de Teatro Caminho do Sol e confirmou que a paixão pelo teatro é o que faz seus olhos brilharem. No domingo, dia 22 de setembro, a jovem atriz teve a oportunidade de se apresentar durante a estreia do Festival no principal ponto de encontro dos marianenses: a praça Gomes Freire, mais conhecida como Jardim.


A peça, inspirada na Commedia dell'arte, vertente do teatro renascentista, retrata cenas do nosso dia a dia e mostrou amores não correspondidos, a ganância dos mais ricos, desigualdades sociais e a força das mulheres na luta contra o machismo. Os personagens, com seus estereótipos e caricaturas, criaram "O Levante" e quebraram barreiras sociais ao final. No Jardim, a plateia se empolgava a cada vez que uma estrutura social era rompida. Mesmo tratando de temas profundos, o espetáculo foi assistido por todas as faixas etárias.




Para Randora, o Festeco é muito importante para a cidade de Mariana, especialmente para os jovens. “A maioria dos eventos que têm aqui não são de teatro, têm mais shows. Então, o papel do Festival é esse: levar a arte de forma gratuita e tem uma gama de atrações que as pessoas podem escolher”, conta ela. 


Assista a seguir o relato de Randora sobre a importância do teatro em sua vida e trechos da peça que ela apresentou na abertura do Festeco: 




#Paratodosverem: Grupo grande de pessoas posando em frente a um coreto iluminado durante o entardecer. Há pessoas de várias idades, incluindo crianças, adolescentes e adultos. Algumas pessoas estão em pé, enquanto outras estão sentadas ou deitadas no chão à frente do grupo, sorrindo para a foto.
Equipe da Associação Caminho do Sol e os espectadores da peça O Levante | Foto: Izabela Gonçalves

Essa perspectiva do teatro como forma de conhecimento e autodescoberta também é defendida por Ernesto Valença. Ele acredita que o engajamento dos jovens nesta arte pode transformar suas realidades. “Independente se a pessoa quer seguir carreira ou não, fazer teatro, é a possibilidade de você tomar contato e conhecer melhor uma linguagem que abre a possibilidade de fazer novas leituras do mundo.” Ele explica ainda que o ato de encenar não fica restrito aos palcos, porque na nossa sociedade todos nós performamos diferentes papeis sociais no nosso cotidiano. “Entender mais dessa arte é dar a possibilidade de entender todas essas relações e ampliar o seu conhecimento sobre o mundo”, diz.


Para o público, a sensação é a mesma. Ana Paula Saraiva, 23, assistiu à peça “Viúva, porém honesta”, comédia do dramaturgo brasilero Nelson Rodrigues, apresentada pela Companhia Academia Brasileira de Teatro (ABT) de Guarulhos (SP). “Eu gostei bastante, dei muita risada, e foi muito interessante ver como os atores fazem adaptações para se comunicar com o público.” 


A espectadora diz, ainda, que gostaria de ter ido assistir a mais apresentações e espera que outros eventos teatrais como este aconteçam na cidade. “Infelizmente o acesso ao teatro é muito distante para algumas realidades e ter a oportunidade de assistir a diferentes estilos de peças em um mesmo Festival é muito legal. Tomara que a arte seja mais fomentada, especialmente entre as crianças e adolescentes, porque é muito enriquecedor”, comenta. 


A reinvindicação do teatro como política cultural 

Segundo Juliana de Conti, Minas Gerais é o estado pioneiro na realização do teatro comunitário. Sua trajetória em Mariana começou quando ela veio para a cidade cursar mestrado em Educação Rural e deu início ao seu trabalho como professora de artes na Escola Estadual do bairro Cabanas. Esse encontro dela com os alunos em sala de aula despertou em Juliana a inspiração para criar o Festival de Teatro Comunitário e a ideia saiu do papel graças ao engajamento de seus estudantes, que participam tanto da organização, quanto das performances nos palcos.


O protagonismo desses jovens vai além das cenas escritas e encenadas, pois a Companhia Caminho do Sol é uma porta de entrada para os que querem se descobrir artistas e produtores de arte. “Quando eu cheguei aqui, comecei a dar aula em escolas de periferia, principalmente na João Ramos Filho. E aí eu vi que lá era um ótimo lugar para começar, porque os jovens eram muito dedicados em tudo que faziam”. 


#Para todos verem: Uma mulher branca com microfone na mão esquerda, e mão na                    cintura, usa camiseta branca e discursa em um teatro.
Juliana de Conti na cerimônia de abertura do Festeco no dia 23 de Setembro.

A primeira edição do Festival, realizada em apenas uma fase regional, foi o momento em que a professora percebeu a vocação de seus alunos. Aqueles jovens estavam dando conta de transmitir, em cena, problemas sociais e políticos, além de cativar a plateia. A partir daí, ela decidiu abraçar o projeto e expandir para os moldes atuais do Festeco. 


Juliana conta sobre o início da construção do Festival e a importância do teatro comunitário para esses jovens. Ouça agora:



Juliana afirma que o avanço da internet e das redes sociais causa um distanciamento físico entre as pessoas criando uma nova forma de sociabilidade, mas o teatro proporciona oportunidades  de trazer os estudantes para viverem o real e o contato humano. Para ela, o município de Mariana investe bastante em entretenimento, mas muito pouco em arte e, menos ainda, em artes cênicas. Nessa edição, o Festeco não contou com o apoio financeiro da Prefeitura Municipal e precisou buscar outras formas de financiamento para sua realização. 


Ernesto Valença defende que além de investimentos em eventos, as cidades de Mariana e Ouro Preto também deveriam investir no teatro como uma política cultural para que não se esgote nos Festivais. Ampliar a possibilidade do teatro se manter nas periferias, nos locais mais vulneráveis e na comunidade é proporcionar às cidades a chance de ter as artes cênicas como referências de transformação social, cultural e política.


Assista a seguir um trecho da fala dele sobre o assunto:



Gustavo Leite, secretário de Cultura de Mariana, confirmou que não houve investimento direto da pasta no Festeco deste ano. Informou que a Secretaria colaborou cedendo o espaço do Cine Teatro, um espaço público, onde aconteceu a maior parte da programação. Ele acredita  que é importante buscar investimento privado para eventos desse tipo: “É bacana a gente prover também recursos que venham da iniciativa privada, não só do poder público. Quando ações culturais ou de qualquer natureza ficam vinculadas somente a recursos do município, é prejudicial às ações que já vêm sendo planejadas”. 



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