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Gabriel Maciel e Geovana Zanaki

Repactuação e invisibilidade na reta final do acordo sobre os crimes da Samarco, Vale e BHP

Após quase nove anos, a população atingida pelo crime socioambiental do rompimento da Barragem de Fundão segue na luta por justiça e reparação. De novo, outra sinalização para a retomada das negociações foi apontada, mas sem uma data definida até o dia 11 de outubro. Enquanto isso, ainda excluídos da mesa de reparação encontram-se os atingidos, com cada vez mais incertezas sobre esse processo


#ParaTodosVerem: Em um primeiro plano à direita está uma casa suja pelo rejeito de minério, na cor marrom, incrustada na estrutura e janelas quebradas. Do lado direito, em plano de fundo, a comunidade atingida está caminhando em uma rua, de costas para a câmera e em procissão.
A procissão de Nossa Senhora das Mercês em Bento Rodrigues devastada chama a atenção para o caminhar de um povo que luta por reparação justa.|Foto: Gabriel Maciel

11 de outubro é o marco estabelecido para o retorno das negociações que decidirá a vida e as histórias rompidas pelos rejeitos das mineradoras Vale e BHP (Samarco), numa extensão que vai de Mariana/MG a Linhares/ES. O processo extrajudicial da repactuação que prevê o encerramento definitivo dos diversos conflitos que cercam o dia do crime, 05 de novembro de 2015 - marcado pelo rompimento de Fundão - havia sido suspenso no início de setembro deste ano por recomendação de Ricardo Rabelo, desembargador que coordena a Mesa de Repactuação. Composta pelas empresas mineradoras e também por membros de órgãos do Poder Público, como os Governos dos Estados de Minas Gerais e do Espírito Santo, pelas Defensorias Públicas dos dois estados e da União e pelo Ministério Público dos Estados e o Federal, a Mesa teria a função de reparar a comunidade atingida nos acordos firmados com a mineradora Samarco, pertencente às empresas Vale e à BHP Billiton. O Governo promete decidir o processo com um acordo de, no mínimo, 100 bilhões de reais.


De acordo com o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, em uma reunião no dia 20 de Setembro, sobre a retomada do horário de verão, o valor pago na repactuação deverá  ser o maior do planeta, fruto de um acordo judicial. Em matéria publicada no dia 21/09/2024 pela Agência Brasil, somado ao já aplicado até agora a proposta do Governo atinge o valor total de  R$167 bilhões de reais. A proposta anterior de R$127 bilhões de reais, incluindo valores em ações já realizadas, feita pelas empresas foi recusada pelo Governo, com a justificativa de que as mineradoras fogem da responsabilidade da recuperação dos territórios. Apesar disso, outro problema é que as informações sobre o destino do dinheiro não necessariamente chegam aos atingidos, que temem por um desfecho que se assemelhe ao realizado pelo caso de Brumadinho. Esse caso foi criticado em virtude da aplicação do recurso ter sido destinado para todo o estado de Minas Gerais e também para promoção política do atual governador, e não prioritariamente para pessoas e locais diretamente atingidos. 


Silveira contesta a possibilidade da repactuação seguir o mesmo caminho, porém a falta de transparência e informações aos atingidos sobre o que será realizado com a indenização prejudica a confiança de quem mais sofre com o crime minerário. Além disso, a sessão cinco, da lei nº 13.105, que orienta o TRF-6 – tribunal que está responsável pela mediação do caso – contempla a cláusula de confidencialidade do processo, tornando ainda mais turva a negociação. Essa cláusula prevê que as discussões internas não sejam reveladas, com a justificativa de resguardar informações que as mineradoras não poderiam abrir ao público, e que são apresentadas na construção do acordo. E por isso, nenhuma das Comissões dos Atingidos, de Mariana e ao longo da bacia do Rio Doce está inserida na Mesa de Repactuação. 


#ParaTodosVerem: Em primeiro plano, Luzia está sentada em um banco de madeira de uma praça. Ela usa blusa azul e brincos da mesma cor. Atrás dela, com corte fotográfico até o busto,  é possível ver uma vegetação verde e construções históricas, desfocadas e mais ao fundo, que revelam o Jardim de Mariana, localizado no centro histórico da cidade.
Luzia Queiroz é atingida de Paracatu de Baixo e integrante da Comissão de Atingidos pela Barragem de Fundão (CABF). | Foto: Geovana Zanaki
“Eu acho que, pelo menos eles tinham que ter decência de vir, pelo menos, vir aqui conversar com a comissão e abrir as cartas na mesa, porque disse que lá é um sigilo total, né? Acho que tem até um documento lá que não pode vazar…” - Luzia Nazaré Mota Queiroz 

Questionada sobre a cláusula do TRF-6, a integrante da comissão de atingidos de Mariana, Luzia Queiroz comenta sobre não ter tido conhecimento prévio dessa regra: “Isso não sabia não, fiquei sabendo outro dia. Então o trem… então ali dentro que tá rolando é oba oba, é oba oba.” Esse ´oba oba´ definido por Luzia diz respeito ao que a invisibilização dos atingidos no processo, somada à falta de qualquer consulta efetiva das comunidades interessadas, pode proporcionar de distorção para o uso dos recursos. Lutando pela restituição do seu território e das vidas rompidas pelo desastre-crime, a comunidade carece de informações sobre o caso que assinará o destino de suas vidas.


Advogado e Pós-graduado em direito minerário e ambiental, Bernardo Campomizzi acompanha a luta dos atingidos em Mariana. Ele e Pâmela Sena, que perdeu sua filha no desastre, entraram recentemente com mandado de segurança para suspender o acordo da repactuação, que é realizado às escuras. Em entrevista, Bernardo revela que, apesar da cláusula resguardar documentos e informações ditas comprometedoras de processos internos das empresas, o caso tem interesse público e sua transparência é amparada por outras leis brasileiras. “Isso nos causa muita surpresa e indignação porque estão sendo descumpridas da Constituição da República três leis basicamente: a Lei de Acesso à Informação, a Política Nacional dos Atingidos por Barragens e a Política Estadual dos Atingidos por Barragens.”


No dia 05 de novembro de 2015, às 16h20, um estrondo foi escutado próximo à região do distrito de Bento Rodrigues. A Barragem de Fundão do complexo Germano, pertencente à mineradora Samarco S.A, rompeu-se, deixando um rastro de destruição de Mariana à foz do Rio Doce, em Linhares, no Espírito Santo. Os moradores de Bento Rodrigues, o primeiro local atingido, tiveram pouco tempo para se salvar. O mar de lama, formado pelos 60 milhões de metros cúbicos de rejeito, atingiu o território e os distritos vizinhos de Camargos, Paracatu de Baixo e subdistritos rurais, seguindo até o litoral Norte capixaba. A partir disso, a vida da população desses territórios mudou, e segue mudando durante esses quase nove anos. Casas foram destruídas, 20 vidas foram perdidas e memórias materiais e imateriais foram soterradas pelo rejeito tóxico.


#ParaTodosVerem: À direita da imagem em um muro em ruínas há a seguinte frase escrita na cor marrom: “a Samarco queria nos matar, mas Jesus nos salvou”. À esquerda, em procissão, pessoas carregam nas costas uma coroa de flores com uma escultura de um Santo da Igreja católica, o São Bento, com uma criança no colo. Ao fundo a vegetação cobre a imagem e deixa aparecer uma pequena porção de céu.
Em procissão, atingidos de Bento Rodrigues carregam sua fé, que, segundo eles, os salvaram do crime.|Foto: Gabriel Maciel

A lama contaminou o solo, o ar e o rio do local. Comunidades rurais, que tinham tudo que precisavam nos quintais de suas casas e viviam disso, perderam tudo. O rejeito seguiu o curso do Rio Gualaxo e do Rio do Carmo até alcançar a bacia do Rio Doce e, por fim, encontrar o mar. A partir disso, pessoas que viviam nesses territórios, se tornaram pessoas atingidas, como é definido pela Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PNAB), sancionada em novembro do ano passado pelo presidente Lula. O Projeto de Lei (PL) das Populações Atingidas é uma luta que há anos vinha sendo reivindicada pelas populações de Mariana e de Brumadinho. Com a instituição da PNAB, agora os povos atingidos passam a ter direitos bastante explícitos, como a participação nas negociações com o poder público e as empresas privadas. Mas esse direito não se aplica à população atingida pela barragem de Fundão em razão do crime ter ocorrido antes do sancionamento do projeto. A nível local a lei vem como um instrumento de auxílio aos atingidos na luta por uma reparação integral e justa.


#ParaTodosVerem: Na imagem é possível ver uma casa atingida pelo rejeito. As paredes da casa guardam a memória daquele dia, com marcas da altura em que a lama chegou e pedaços de rejeito ainda grudados, contrastando com a sua cor branca. À direita, uma janela que estava fechada, aparece quebrada com a sua base torta. Dentro da construção há alguns restos de móveis e mobílias, que ilustram o que restou daquele dia 05 de novembro de 2015.
Ruínas de uma casa em Bento Rodrigues é avistada em uma curva, à caminho da igreja das Mercês, durante a procissão em celebração à Nossa Senhora das Mercês.|Foto: Geovana Zanaki

O rompimento da barragem de Fundão se tornou o maior crime socioambiental da história do país. Não só a vida das pessoas e os seus modos de vida foram impactados, a fauna e a flora do caminho da lama também foi duramente atingida. A ponto de, até hoje, haver estudos que indicam a presença de metais tóxicos nas águas dos leitos de rios e no mar do Espírito Santo. Um estudo recente realizado pelo Programa de Monitoramento da Biodiversidade Aquática da Universidade Federal do Espírito Santo, por exemplo, indica o rejeito da barragem de Fundão como o causador de anomalias e tumores encontrados em animais marinhos. Os resultados dessa pesquisa estão no 5° Relatório Anual dos Ambientes Dulcícola, Costeiro e Marinho. Já, se levada em conta a extensão da destruição por uma barragem de minério de ferro, muitos especialistas afirmam ser este o maior desastre já registrado no mundo.


Desde o crime minerário da Vale e BHP (Samarco), ações civis e mobilizações das Comissões dos Atingidos são estruturadas para incluir seus representantes no processo. Anderson Jesus de Paula, é atingido de Paracatu, está desde o começo na luta e pontua que “o tempo é favorável para o agressor. Nunca pro agredido”. A batalha pela restituição dos modos de vida tem sido árdua e nem mesmo as casas do reassentamento da Renova atendem às necessidades dos atingidos. Fatores como esse reforçam o esgotamento mental e físico de pessoas como Mirela Sant´ana, que possuíam um modo de vida e tiveram que transformar suas realidades. Já com 19 anos de idade, ela passou a fazer parte da Comissão de Atingidos pela Barragem de Fundão (CABF), como é chamada a comissão de Mariana, tornando-se a integrante mais nova da organização. De lá para cá, sua vida se divide em luta, trabalho e os estudos no curso de serviço social da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Para ela, esse continua sendo "um rompimento que não passa."


Desde o ano do desastre de Fundão, em 2015, foi instituída a primeira Ação Civil Pública (ACP) da população atingida, junto ao Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), contra a mineradora Samarco. Diferentemente dessa ação, movida há tanto tempo, o atual processo de  repactuação não prevê a retirada da lama que soterrou as comunidades por onde passou, assim como não existem planos definidos, neste fórum, sobre a realização de  estudos e ações para restaurar e  reestruturar toda a bacia atingida.


#ParaTodosVerem: Anderson está posicionado no primeiro plano da foto. Ele veste blusa cinza e está com os braços apoiados em cima de uma bancada. Ao fundo dele é possível ver algumas caixas de papelão e outros objetos pretos em cima de uma bancada de granito dr cor bege.
Anderson é atingido de Paracatu de Baixo, e pós-graduado em perícia ambiental . | Foto: Geovana Zanaki
“Porque se fosse material de minério, se fosse o lucro delas, elas já tinham buscado até a última pá das nossas propriedades. Eu penso isso, sabe!? Que se fosse o lucro delas, que tivesse espalhado para as nossas propriedades… Nesses nove anos ela já tinha buscado tudo. Mas como é lixo, deixa lá. E aí a questão da repactuação é isto: como ficam as propriedades, nós vamos continuar sendo depósito de lixo?” - Anderson Jesus de Paula


#ParaTodosVerem: Em primeiro plano, Mirela está centralizada e segura um celular em uma de suas mãos. Na tela do celular há uma foto de casas atingidas pela lama da Barragem de Fundão, no distrito em que Mirela morava. Na imagem há uma casa com o chão coberto por lama, as paredes estão com marcas da altura que o rejeito chegou. Ao fundo da imagem a casa de sua família está coberta pela lama. Atrás dela há uma prateleira com uma planta.
Mirela é de Ponte do Gama e representa a comunidade rural atingida. | Foto: Geovana Zanaki
“Quando a gente fala em reparação só não é só indenização e não é só uma nova moradia para as pessoas. Porque essas pessoas, elas tinham um modo de vida muito próprio, muito característico e que não foi devolvido. E que só dá indenização e uma nova casa não vai devolver, principalmente o pessoal da roça.”- Mirela Sant´ana


Manoel Marcos Muniz, é do distrito de Bento Rodrigues. Durante o rompimento, a casa de seus pais foi atingida pela lama e parte do terreno pertencente a sua casa também. Cerca de um ano depois, o que restou de sua casa, que ficava na parte baixa do distrito, foi inundada pelo dique S4, construído pela Samarco, com o pretexto de impedir o contínuo escoamento de rejeito e para evitar que, durante o primeiro período chuvoso após o rompimento, a lama voltasse a vazar e o resíduos minerários voltassem a poluir a bacia do Rio Doce. O dique foi construído com a autorização do Governador da época, Fernando Pimentel, mesmo sem a permissão de Marcos e de outros atingidos. A promessa do decreto era de que o dique seria temporário e a concessão dos terrenos alagados tinha validade de três anos, ou seja, até 2019. Contudo, até hoje, oito anos depois de sua construção, o dique não foi descomissionado e as ruínas e terrenos seguem submersas. 


Marquinho, como é carinhosamente conhecido pela CABF, de Mariana, e pelos moradores de Bento Rodrigues, cresceu no distrito com seus pais e irmãos. Foi funcionário da Samarco por muito tempo. E quando ocorreu o rompimento, havia um ano e um dia que estava aposentado da empresa. Ele relata que trabalhou e lutou muito para construir tudo o que tinha em Bento. Marcos havia projetado uma vida com a sua família no distrito. Hoje ele tem que lutar pela reparação, pelo descomissionamento do dique e pela restituição dos modos de vida. Cansado ele questiona: “Eles falam em voltar os modos de vida, mas como volta os modos de vida, sendo que não tem a terra?”


#ParaTodosVerem: Marcos está posicionado no primeiro plano da imagem à direita, com sua mão apoiada em um muro baixo, de onde é possível ver uma das casas de encontro da comunidade. A cor da parede é verde. Há também uma janela reformada do lado esquerdo da foto.
Em frente a uma das casas usadas como ponto de encontro dos companheiros atingidos, em Bento Rodrigues, Marquinhos conta sua história com olhar atento ao seu território.
“Os terrenos ali, aonde meu pai foi criado, aonde ele criou oito filhos, hoje não existe nada, nem consigo pisar. Tá dentro do dique. Isso para mim, para mim, como fui criado naquela área ali, correndo, brincando, cuidando, trabalhando, não dá nem para ver e nem pisar. Então para mim é revoltante.”


A repactuação foi criada para a solução de conflitos e danos causados pelo rompimento da barragem. Atualmente, de acordo com matéria publicada, no dia 21/09/2024, pela Agência Brasil, existem mais de 85 mil processos judiciais sem desfecho, direcionados à Samarco e à Fundação Renova. Esse volume de processos decorre dos danos causados pelo crime, dos defeitos apresentados nas casas do reassentamento, das indenizações e do não reconhecimento de pessoas e comunidades como atingidas. A Mesa de Repactuação foi criada em 15 de maio de 2023, pelo TRF-6. Além das empresas mineradoras, as instâncias Judiciais, Executivas e Legislativas dos estados atingidos e da União integram esse fórum. 


Em 2016, 4 meses após o rompimento foi instituído o Termo de Transação e de Ajustamento a Conduta (T-TAC) definido como o processo de pactuação do crime. Porém, dois anos depois, em 2018, é instituído o Termo de Ajustamento a Conduta-Governança (TAC-GOV), prevendo a integração dos atingidos ao processo. Isso ocorreu em razão da governança do T-TAC ter a Renova como um de seus atores na pactuação e, de acordo com Bernardo, a fundação  representa os interesses das mineradoras: “Porque também se viu que a fundação nunca funcionou de fato, sempre foi um desvio de finalidade, fazendo publicidade. É uma instituição que foi criada para a própria sobrevivência (das empresas) e não para sobrevivência daqueles que foram atingidos pelo crime”.


Assim, as entidades públicas instituíram o processo de repactuação com a promessa da participação popular. Porém, apenas no dia 27 de agosto deste ano (2024), seis anos depois da criação do TAC-GOV, houve a ocupação das 72 vagas na estrutura de Governança do processo por meio de uma eleição. Luzia e Mirela estiveram presentes no “Encontro das Pessoas Atingidas pelo Rompimento da Barragem de Fundão, Bacia do Rio Doce e Litoral Norte Capixaba”, que pela primeira vez reuniu centenas de atingidos pelo rompimento de Fundão dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo. Com o intuito de fortalecer a participação popular no processo de Repactuação e de eleger representantes de cada um dos 21 territórios atingidos participantes do encontro.


Luzia e Mirela são integrantes da comissão de atingidos de Mariana e foram ao Encontro dos Atingidos da Bacia do Rio Doce, convidadas como observadoras. A CABF, da qual fazem parte e que atualmente conta com cerca de 15 atingidos, têm enfrentado dificuldades em razão do longo período de luta. Segundo Mirela, em função do cansaço físico e mental de muitos dos seus atuais e ex-integrantes, Mariana não conseguiu formar o quórum obrigatório de seis pessoas para eleger um representante para compor o TAC-GOV. Luzia explicou ainda que as pessoas atingidas de Mariana não se sentem representadas pelo TAC-GOV, nem pela Repactuação, pois o território tem necessidades mais específicas e centrais, como a restituição dos modos de vida dos subdistritos destruídos, que está sendo considerado no processo da Ação Civil Pública (ACP) em andamento no Estado de Minas Gerais.


 #ParaTodosVerem: Em primeiro plano, Luzia, com camiseta branca, e Mirela, vestindo preto, estão em destaque no centro e na parte esquerda da foto. Ambas estão sentadas compondo uma mesa de discussão, com diversos copos de vidro e plástico e alguns microfones sobre ela. Luzia, ao centro, em seu momento de fala, segura um microfone, enquanto direciona seu olhar para frente. Ao lado esquerdo dela está Mirela, que olha fixamente para baixo. Do lado direito da fotografia e também sentados à mesa, há dois homens. No fundo da imagem existe uma tela de projeção que transmite a reunião e uma parede que na foto tem a cor marrom.
Embora cansadas, após anos na luta por uma reparação justa, Luzia e Mirella ainda participam ativamente na luta dos atingidos. |Foto de: Alcides Miranda

De acordo com Luzia, o restante da bacia não tem como entender as demandas do processo movido pela Ação Civil Pública (ACP) em Mariana, que trata diretamente de necessidades específicas do município, como os reassentamentos, a restituição dos modos de vida e identidades totalmente devastados, além das indenizações específicas aos atingidos que tiveram seus bens impactados. De acordo com ela, os outros processos, movidos pela Mesa de Repactuação e pelo TAC-GOV não colocam em questão essas demandas locais. Assim, a ausência da comissão marianense no TAC-GOV reflete também a posição da CABF de entender que, como não há garantias dos pleitos locais serem contemplados, e diante das limitações da comissão de Mariana frente a tantas demandas, houve a necessidade de uma priorização de direcionamento da luta para o que é mais urgente, no caso a ACP. 


Os perigos da falta de informações sobre a Repactuação em andamento somada ao sentimento de pertencimento aos territórios e vidas devastadas, que precisam ser reparadas, move os atingidos na luta por seus direitos até hoje. A relação desse povo com os seus distritos e subdistritos destruídos vai além do dinheiro envolvido no futuro acordo. É preciso comprometimento e consideração por parte da Mesa de Repactuação com o vínculo e a identidade das vítimas com seus locais de moradia. Ainda com a sua casa praticamente irreconhecível, Marquinho, atingido de Bento Rodrigues enfatiza: “é aquele vínculo que foi criado há anos, entendeu? Aquela questão de pertencimento mesmo. É aquela sensação gostosa, né? Então, hoje quando a gente tá chegando (em Bento) parece que não mudou nada. A gente sabe que a gente tá chegando prum lugar destruído, mas a sensação de pertencimento é outra.”


Nas imagens abaixo, enviadas por Marquinhos, há o comparativo do antes e depois da casa dele após o rompimento da barragem em 2015 e a construção do dique S4, em 2016. Ainda hoje a casa em que vivia com a sua família se encontra embaixo da água. Segundo ele, essa situação reitera sua condição de atingido pelas mineração: “É mais um modo de atingir, vamos dizer. Porque no dia 05 nós fomos atingidos pela lama que chegou e arrancou tudo, agora com esse dique, é mais um modo, mais um meio de atingir.”


#ParaTodosVerem: fotografia de uma folha A4 com duas imagens horizontais coladas, uma acima e outra abaixo. A imagem superior representa a fachada da casa de Marquinhos. À frente há um muro baixo com grades e portão de ferro, fino e antigo. Na parede branca da fachada há uma porta também de ferro e vidro e três janelas venezianas. Bem ao fundo da foto é possível ver um morro verde e uma linha fina de céu azul. A outra fotografia, de baixo, é do quintal da casa com uma horta. Marquinhos e uma criança, do lado direito da imagem, fazem o manuseio da terra do local. Ao fundo, mais uma parte do imóvel e a vista para os morros de Bento Rodrigues. Acima no extremo da folha A4 está digitalizado: “Minha casa em Bento Rodrigues antes do crime”
"Minha casa em Bento Rodrigues antes do crime"
#ParaTodosVerem: fotografia de uma folha A4 com duas imagens verticais coladas: uma na lateral superior esquerda acima e outra na lateral inferior direita. As imagens de cima e de baixo apresentam a área da casa de Marquinho alagada pela água do dique com mato rasteiro nelas. No extremo superior da folha está digitado: “Onde era minha casa em Bento Rodrigues hoje está assim. É revoltante.”
“Onde era minha casa em Bento Rodrigues, hoje está assim. É revoltante.

 As imagens enviadas pelo morador de Bento foram utilizadas em audiências e reuniões para apresentar sua revolta e, com isso, revelam também a luta e o amor pelo seu território. Território esse que, mesmo com as moradas transformadas em ruínas e irreconhecíveis pela lama, submergidas pelo Dique e impactadas pelo saqueamento dos imóveis que ficaram de pé, segue sagrado e indispensável para esta comunidade. A partir do contexto da repactuação que se arrasta e desconsidera demandas tão indispensáveis, o advogado Bernardo reconhece que o processo é doloroso para essas pessoas e também comenta o aparente desejo do Estado e das empresas de encerrar o caso. Ao mesmo tempo, ele contesta a forma como isso está sendo feito: “Todo mundo quer uma solução definitiva para o caso, né!? Mas não uma solução definitiva dessa forma. De uma forma obscura.”


Articulados por meio da Ação Civil Pública, que parece ser o processo mais representativo dos anseios dos atingidos por solucionar o caso com a devida justiça, a comunidade teme a invisibilidade a que está sendo subjugada pela Repactuação. O processo da Mesa de Repactuação é definido pelo Estado como o encerramento do crime e não é de conhecimento do povo. Como um crime pode ser encerrado sem que as vítimas sejam ouvidas? Temendo que ele prejudique os direitos adquiridos e os que ainda estão sendo conquistados, Mirela comenta: “A gente não sabe o que que vai acontecer, se assinar a repactuação. Sabe que tem um dinheiro grande rolando, mas para quem vai, como vai ser usado, o que vai acontecer, inclusive se vai interferir na ACP aqui de Mariana, a gente não sabe dizer”.


#ParaTodosVerem: Na imagem há as ruínas de uma construção tingida da cor marrom dos rejeitos de minério que passaram por ali. Ela está abandonada, sem portas,  janelas e telhado, no distrito de Bento Rodrigues. É possível ver, pintada de branco, em sua parede a seguinte frase “Essa marcou as nossas vidas”, antecedida por uma placa branca, afixada no que restou do muro de entrada dessa construção, com os dizeres, na cor preta: “Para que nunca se esqueça”, remetendo ao crime socioambiental cometido pelas empresas mineradoras no território. Alguns pilares entre as ruínas estão visíveis, assim como alguns tijolos estão  quebrados e pedaços do muro espalhados pelo chão e pela vegetação seca no chão.
Ruínas de uma construção do Distrito de Bento Rodrigues.|Foto: Geovana Zanaki

Em audiência pública da comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, no dia 05 de setembro deste ano, uma fala do integrante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) chamou a atenção. Joceli Andrioli, que é membro da coordenação do MAB, comenta que seriam necessários R$700 bilhões para garantir a reparação de toda a Bacia do Rio Doce, o que contesta o possível novo acordo fruto da repactuação, com os seus cerca de R$100 bilhões propostos pelo Ministro de Minas e Energia.


Anderson Cordeiro é atingido pela barragem do Córrego do Feijão, em Brumadinho, e integrante da Banda São Sebastião de Brumadinho. Ele estava fazendo o cortejo na procissão da festa das Mercês, que aconteceu no último sábado de setembro (28), em Bento Rodrigues, em comemoração ao início da restauração da igreja no distrito. E alega que, assim como está acontecendo em Mariana, ocorreu em Brumadinho, a população não foi escutada. Ainda segundo Cordeiro, com isso a indenização foi destinada ao Estado e a obras à parte dos impactos causados pelo rompimento.


#ParaTodosVerem: Anderson está presente no centro da imagem, vestindo uma camiseta branca de mangas pretas, contendo a logo preta e o nome em vermelho da banda: "São Sebastião".  Ele segura  um vaso de flores na entrada do local onde foi celebrada a missa à Nossa Senhora das Mercês, no Distrito de Bento Rodrigues. Atrás dele há uma mulher também integrante da banda, segurando flores. Mais ao fundo da imagem há estruturas metálicas de proteção da obra de restauração, e em último plano é possível ver parte da igreja Nossa Senhora das Mercês coberta por uma tela de construção. No canto direito da foto aparece uma espécie de buquê com flores vermelhas, brancas e rosas em bastante destaque.
Anderson Cordeiro é integrante da banda São Sebastião e atingido de Brumadinho. No último sábado (28), ele integrou o cortejo na igreja de Nossa Senhora das Mercês em Bento Rodrigues.|Foto: Gabriel Maciel.

Questionado sobre como foi realizada a aplicação do dinheiro da indenização por parte parte do Estado em Brumadinho, Anderson  comenta: “teve coisas boas, mas também teve muitas coisas ruins. Acredito que a maioria foram ruins, porque não foi uma decisão da população, né? Foi uma decisão, salvo engano do governo, das pessoas lá do alto, né? Não foi a comunidade que decidiu isso, né?” Esse é um receio vivido atualmente pela população atingida de Mariana, que não está inserida na Mesa de Repactuação e teme que, com a conclusão prevista das negociações, o recurso pactuado não seja realmente destinado para a reparação justa e devida dos danos causados pelo rompimento.


Nesse cenário de incertezas, Anderson Jesus, de Paracatu, propõe uma reflexão sobre como seria a reparação desses territórios devastados caso neste mês saia o acordo final: “A pergunta que fica nessa repactuação é: uma coisa é o dinheiro que foi depositado. Mas e aí quem vai recuperar a calha do rio? Quem vai recuperar o meio ambiente? As mineradoras não vão ter mais essa responsabilidade de recuperar se ela pagou pelo dano.”


De acordo com Bernardo e todos os atingidos da comissão entrevistados, pouco se sabe sobre o processo e as medidas que serão tomadas com a verba depositada. O advogado ainda destaca que as empresas afirmam ser impossível restabelecer o território, mesmo sem apresentar documentações fundamentadas.



 

A Cáritas, Assessoria Técnica Independente de Mariana, que assessora as pessoas atingidas, levantou uma série de informações importantes para detalhar ainda mais esse processo, no documento entitulado: Entenda o que é a repactuação do processo de reparação do Caso de Mariana.

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