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Emanuelle Santucci e Pedro Nunes

Reparação inacabada: Novas casas entregues pela Fundação Renova ainda apresentam problemas

O que deveria ser o final de uma espera de quase 9 anos por reparação virou mais um capítulo angustiante na vida dos atingidos, que agora lidam com novos atrasos e defeitos estruturais em suas casas nos reassentamentos.


#Paratodosverem: Quatro trabalhadores da construção civil, todos vestidos com uniformes de segurança laranja e capacetes, realizando reparos ou obras na fachada de uma casa de muro branco. Três deles estão no chão: um à esquerda, misturando material em uma carriola, enquanto o outro está próximo da porta de entrada no chão. À direita, outros dois trabalhadores, com um deles sobre um andaime, mexendo na estrutura de um muro cinza que está sendo rebocado. A casa ao fundo tem paredes brancas e uma parte pintada de laranja, com um portão de garagem de metal cinza e  uma árvore de meia altura plantada. O telhado marrom é de telhas de barro. O cenário sugere que a casa está em fase de finalização ou passando por ajustes.
Trabalhadores realizam ajustes na fachada de casas entregues pela Fundação Renova em Paracatu de Baixo. | Foto:Pedro Nunes

A Fundação Renova continua a entrega das novas casas aos moradores atingidos pela barragem em Paracatu de Baixo e Bento Rodrigues, um processo que começou em maio de 2023 segundo a Renova, prometendo uma série de melhorias e serviços para garantir a adaptação e o bem-estar dos atingidos. No entanto, a transição para as novas moradias, iniciada mais de sete anos após o desastre-crime minerário, tem sido marcada por preocupações e desafios para os atingidos. 


A fundação descumpriu diferentes prazos de entrega, sendo o último, 21/02/2021, não respeitado, sem justificativas e com a multa diária não aplicada, segundo o Relatório Técnico de Violação de Direitos na Reparação de Moradia em Mariana, fornecido pela professora e pesquisadora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Flora Passos. Ana Lúcia da Silva, uma das atingidas, faleceu sem ter sequer visto o projeto da casa, vítima da demora e falta de respostas da Fundação Renova, como nos contou sua filha, Raiane Rosália de Oliveira. Não bastassem os atrasos, as novas casas têm apresentado defeitos recorrentes, como ferragens expostas, rachaduras, manchas, revestimentos trincados, problemas de impermeabilização, entre outros, também de acordo  o mesmo documento.


Aos moradores que manifestaram interesse imediato, as primeiras entregas foram realizadas com o Habite-se sendo emitido pela Prefeitura de Mariana, segundo afirmou a Fundação. Esta é apenas uma parte da reparação após o crime ambiental cometido pela Samarco em 2015, quando a ruptura da barragem da Vale/BHP/Samarco causou um dos maiores desastres socioambientais do Brasil, e a morte de 20 pessoas, atingindo gravemente comunidades como Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, que perderam tudo. Foi justamente em resposta ao desastre que a Fundação Renova foi criada para coordenar as ações de reparação e compensação, incluindo a construção de novas moradias para os atingidos. 


As residências que foram entregues seguem a orientação da Lei Municipal Complementar Nº 183/2018, que cria e regulamenta Áreas de Diretrizes Especiais de Paracatu de Baixo, para fins de implantação do reassentamento coletivo de interesse social desse subdistrito. 

No entanto, algumas famílias reassentadas receberam terrenos menores do que aqueles que possuíam originalmente nas áreas devastadas pela barragem. E mesmo que as novas casas tenham sido ampliadas em até 20m² de área construída, não houve um aumento correspondente ao tamanho dos terrenos originais, o que resultou em perdas significativas de espaço de quintal. Isso limita futuras construções, o plantio, a criação de animais e até mesmo as atividades de lazer, prejudicando o pleno aproveitamento do terreno disponível. Ou seja, viola o direito a terem seus modos de vida restituídos.


#Paratodosverem: A imagem mostra um ambiente com um piso branco levemente amarelado. As paredes, também brancas, de ajulejos. Encostados na parede, há dois equipamentos. O menor tem um fio que está solto e pendurado em uma estrutura metálica, enquanto o maior, que também possui um fio jogado no chão,  sobre ele há cinco bacias de plástico transparente e uma barra de ferro. Acima de cada um desses equipamentos, há uma tomada fixada na parede.
Por problemas elétricos, alguns equipamentos da mercearia de Romeu não podem ser ligados simultaneamente | Foto: Pedro Nunes

Essa combinação de injustiças impacta diretamente a fonte de renda de vários atingidos, já que antes muitos criavam gado para subsistência ou mantinham hortas, dependendo da agricultura familiar para sobreviver. “Em Paracatu os animais viviam soltos, hoje não podem ficar soltos na rua, e não se tem terrenos para colocar eles, então muita gente sobrevivia disso, que era o leite, uma galinha, um porco, hoje aqui não pode criar mais, a Renova simplesmente entregou a casa e tchau, não se preocupou com isso”, afirmou Romeu Geraldo de Oliveira, Presidente da Associação de Moradores de Paracatu.


Após a entrega das casas pela Renova nas comunidades de Paracatu e Bento Rodrigues, foram identificados vários problemas, como rachaduras, vergalhões expostos e acabamentos mal executados, mesmo após a fiscalização CONTERRA/UFOP. | Fotos: Grupo CONTERRA/UFOP, Romeu Geraldo, Pedro Nunes.


“No antigo Paracatu não pagava IPTU, não pagava água, e aqui vamos passar a pagar, já estamos com medo do futuro.”

Embora as novas moradias possam parecer "luxuosas" para quem as observa de fora, os moradores enfrentam uma realidade bem diferente. Além de cômodos muito menores do que os que possuíam em suas residências originais, as casas foram entregues inacabadas, com materiais de baixa qualidade e frequentemente apresentando defeitos, de acordo com seus moradores. 


Outro desafio de médio e longo prazo diz respeito ao novo padrão e a localização das moradias, que aumentaram sobremaneira o valor dos imóveis, e consequentemente acarretam impactos financeiros, por exemplo sobre o IPTU, que assim como conta de água não eram cobrados antes, mas agora passarão a ser novas despesas. A Renova deverá  pagar essas contas por cinco anos, mas muitos moradores temem não conseguir manter as casas após esse período, especialmente levando em conta o aumento considerável do custo de vida, como relatou Ana Paula, atingida de Paracatu de Baixo: “No antigo Paracatu não pagava iptu, não pagava água, e aqui vamos passar a pagar, já estamos com medo do futuro. Em questão de dificuldades financeiras, nós temos, porque quando aceitamos voltar ao reassentamento, a Renova cortou algumas ajudas financeiras.”.


#Paratodosverem: Na imagem há um telhado feito de PVC, que é claro. Esse telhado está apoiado em várias estruturas de madeira dispostas tanto na vertical quanto na horizontal, criando uma rede de suportes. À direita, há uma estrutura de cimento que é revestida com um material de madeira. Abaixo dessa estrutura de cimento, há duas lâmpadas fixadas em uma parede. A parede é feita de pequenas peças de porcelana, que são colocadas juntas para formar uma superfície. No centro do ambiente, há uma televisão que está ligada. Há um predomínio das cores marrom e bege em toda a foto.
Legenda: Apesar das reclamações de Romeu sobre a falta de telhado na mercearia, a Fundação Renova não atendeu ao pedido, e ele teve que arcar com os custos sozinho. | Foto: Pedro Nunes

As casas seguem apresentando diversos defeitos desde a entrega das chaves, iniciada há quase um ano. De acordo com Romeu, os problemas começaram a surgir imediatamente após se mudar para lá com a família. Desde então, a Renova tem se mostrado ausente na reparação dos defeitos, deixando as residências em condições que ainda não oferecem o mínimo de dignidade para a habitação: “Quando você pega a casa, está cheia de problemas e a Renova não resolve nada, tem um ano que moro nessa casa e tenho muitas pendências e ninguém resolve, tiram fotos, falam que vão resolver e nada”, contou Romeu ao Lampião. 


#Paratodosverem: A imagem mostra uma parede branca que está quebrada em uma área específica, criando um caminho onde passa uma mangueira  amarela de passar fiação  e uma mangueira laranja. O teto também está danificado, com uma abertura quadrada por onde saem o cano e a mangueira. Ao lado dessa parede há uma porta marrom de madeira aberta.
Logo após a entrega da casa realizada pela Renova, a fundação já precisou realizar reformas devido a problemas elétricos. | Foto: Romeu Geraldo de Oliveira
#Paratodosverem: A imagem mostra um piso dividido em quadrados. Há sete quadrados pretos e dois quadrados de madeira. Os quadrados pretos estão visivelmente desgastados, com algumas áreas inchadas ou levantadas. Formando dois triângulos, nas laterais esquerda inferior e direita superior, há um piso de outro formato e cor marrom, imitando madeira
Logo após a entrega, atingido relata problemas com o piso de entrada da sua casa que começou a estufar | Foto: Pedro Nunes

“As paredes estavam tortas, a drenagem não funcionava, e nem sequer havia um portão social para entrar na casa”

Luzia Queiroz, membro da Comissão de Atingidos pela Barragem de Fundão (CABF) e atingida também de Paracatu de Baixo, revelou diversas insatisfações em todo o processo reparatório, já na fase de construção das residências: “Não respeitaram o projeto e tivemos que nos estressar porque não estava como planejado. As paredes estavam tortas, a drenagem não funcionava, e nem sequer havia um portão social para entrar na casa. Além disso, as fiações estavam expostas, com risco de entrarem em contato com a água durante a chuva. Há também algumas árvores que, se chover muito, correm o risco de cair sobre a casa”. No dia 09 de setembro, Luzia recebeu uma negativa da Fundação Renova sobre o portão, que continuará impossibilitando o acesso de veículos de maior altura à entrada de sua casa.


Diante de todos os problemas relatados e a população de Paracatu de Baixo não ter respostas efetivas da Renova, a Cáritas, assessoria técnica da comunidade atingida em Mariana, realizou uma roda de conversa no dia 03 de setembro, no Salão Comunitário de Paracatu. O objetivo principal do encontro foi pensar maneiras de viabilizar a fiscalização das obras do reassentamento, dentro da realidade das pessoas atingidas  e atual momento do processo de reparação. A atividade coletiva foi conduzida por um grupo de moradores atingidos que enfrentava, segundo relatos na ocasião, o desânimo causado pela falta de retornos efetivos e compromisso da Renova. 


A reunião contou com a presença de moradores atingidos, da CABF e da Associação de Moradores de Paracatu, que de forma voluntária realizam fiscalização nas obras, tanto as inacabadas quanto as já entregues e com problemas persistentes. Também participaram da reunião profissionais da Cáritas MG, das áreas técnicas de Mobilização, Patrimônio, Comunicação, Jurídico e Arquitetura e Engenharia, que auxiliaram os atingidos em traçar adequações necessárias para efetivação da agenda. Na ocasião, atingidos e atingidas relataram que se sentem esquecidos e negligenciados pela Renova, demonstrando uma perda de vontade de continuar a luta que antes os motivava. Foi um momento de olhar para trás e refletir sobre as conquistas obtidas com a luta e a resiliência dos moradores, reunir forças e continuar lutando pelos seus direitos, conforme reforçou a equipe da Cáritas MG.


#Paratodosverem: Na imagem, aparece um grupo de 14 pessoas em círculo, vestidos com calças, bermudas e camisetas de diversas cores, como preto, azul, vermelho, amarelo e  cinza. Há uma maior presença de mulheres do que de homens. Ao fundo da sala, à direita, há uma parede de madeira da cor bege claro que se estende até dois terços do espaço.
Cáritas se reuniu com membros voluntários da equipe fiscalizadora, com o intuito de retornar às atividades que estavam paradas por causa da falta de adesão. | Foto: Pedro Henrique Hudson

“Hoje estamos pagando por um erro, por não termos entendimento e não sermos especializados em coisas que não conhecemos”

Apesar de a Fundação afirmar, em notas e matérias em seu site, que as casas foram construídas conforme as preferências dos moradores, muitos atingidos contestam essa versão. O jornal Lampião entrou em contato com a Fundação Renova para entender como vai funcionar as novas despesas para as famílias e a sustentação desses custos depois de cinco anos, mas não obtivemos respostas.


Os atingidos reclamam que, além de perderem tudo, muitos aspectos das moradias no novo Paracatu — antigo Paracatu de Baixo — foram decididos com base nas projeções e condições da Renova, sem considerar suas reais necessidades e desejos. Na fase de desenvolvimento dos projetos, as famílias atingidas não receberam nenhum acesso aos dados complementares, como os de estrutura, elétrica, hidráulica, drenagem ou iluminação, o que só está ocorrendo após as casas entregues. Elas tiveram acesso apenas a uma versão conceitual do projeto arquitetônico, dificultando a compreensão completa das futuras residências.


Para Ana Paula, isso é visto como um descaso da Renova, já que a maioria deles não são da área técnica e não compreendem o que certas partes do projeto significam: “Hoje estamos pagando por um erro, por não termos entendimento e não sermos especializados em coisas que não conhecemos. Muitas das coisas que estamos vendo de errado nas casas agora poderiam ter sido prevenidas no passado”.


Além de toda a perda, dos atrasos e da denunciada falta de comprometimento da fundação com os atingidos, a população de Paracatu ainda enfrenta dificuldades com as novas adaptações impostas, que afetam profundamente a vida familiar e comunitária, visto que, segundo eles e a professora Flora Passos, a Renova não respeitou o desejo da comunidade de que a vizinhança fosse totalmente mantida nas mesmas condições de antes.


As relações de proximidade com os vizinhos, antes quase como uma família, foram prejudicadas, fragilizando os laços como conta a Professora Carolina Saraiva, do Departamento de Administração da Universidade Federal de Ouro Preto: “Eles tinham uma vida coletivista, uma vida em comunidade estabelecida com o tipo de laço social muito forte, e isso se perdeu com a queda da barragem de fundão. Com as formas de organização de pensar as moradias, isso também se perdeu, porque o reassentamento não respeitou esses laços sociais”. 


A professora Carol contou ainda ao Jornal Lampião que, durante as entrevistas conduzidas por ela com a comunidade atingida, nos anos de 2020, 2021 e 2022, foi percebido que não existia pobreza entre eles, que agiam em comunidade, de forma que um ajudava o outro. “Ninguém passava fome, porque um dia um dava um couve para um, outro dava uma dúzia de ovos para outro, e isso acabou”. Dessa forma, o impacto social é extremamente grave, pois a mudança no estilo de vida afetou a sobrevivência das pessoas. Muitos, além de perderem seus meios de sustento, não conseguem mais manter o senso de comunidade, já que a fundação não respeitou o desejo de permanecerem próximos exatamente como era antes, e assim preservarem essa convivência coletiva.


Diante de tantos desafios, os atingidos agora encaram um futuro incerto, temendo não conseguir arcar com os novos custos, como IPTU e água, despesas que antes não faziam parte de suas realidades. Segundo a Secretaria da Fazenda de Mariana, e matérias veiculadas na Folha de São Paulo e Estado de Minas, o reassentamento agora chamado Paracatu está localizado em uma nova área, sendo um subdistrito pertencente ao distrito de Monsenhor Horta, como já era antes do crime minerário. O outro reassentamento, chamado Novo Bento Rodrigues, permaneceu como subdistrito de Camargos em seu novo território.


De acordo com Joseval Moreira do Egito, Chefe do Departamento de Fiscalização Tributária e Cadastro Imobiliário, para a prefeitura, em 2024, o valor do metro quadrado (m²) da área construída nos dois reassentamentos é de R$215, enquanto o valor do m² da área do terreno é de R$109,50.  Ainda segundo ele, o valor médio do IPTU por imóvel para o exercício de 2024 referente ao subdistrito de Novo Bento Rodrigues é de R$218,00 por ano, que também é semelhante ao valor em Paracatu. Essa média pode variar, sendo possível que alguns contribuintes paguem um pouco mais ou um pouco menos, dependendo das características e localização dos imóveis. 


Mas o que se observa nos sites das imobiliárias de Mariana é que o preço de mercado dos imóveis construídos tem superado 1 milhão de reais, o que eleva significativamente o valor do m² construído. No entanto, ainda de acordo com Joseval, o mercado não afeta diretamente o cálculo do IPTU, já que para esse último fim são utilizados somente os valores de m² estabelecidos pela Planta Genérica de Valores, regulamentada por decreto publicado anualmente, conforme definido no art. 43 Código Tributário Municipal de Mariana (Lei Complementar 007/2001). Joseval ainda afirma que, em média, o aumento anual sobre o valor venal dos imóveis e, portanto, também do IPTU, é de cerca de 10% ao ano. Com o decorrer do tempo, pode também haver uma revisão da Planta Genérica de Valores, mas, se isso acontecer, seria para todo o município de Mariana. E, para tanto, há um longo processo que passaria por audiências públicas, votação na Câmara Legislativa entre outros trâmites administrativos e legais. Ou seja, não haveria como essa correção ser feita de forma abrupta de um ano para outro.


O problema é que para uma família que nunca havia pago esse e outros tributos que passarão a ser cobrados, associado ao fato de que hoje a comunidade atingida vê seus modos de vida e economia inviabilizados pelas características dos reassentamentos, as novas despesas  aumentam o sentimento de insegurança financeira, agravado ainda mais pela falta de suporte e transparência da Fundação Renova. Isso leva muitas famílias a temerem não conseguir manter suas novas residências a longo prazo, e então, mais uma vez, serem deslocadas à força de suas moradas e identidades comunitárias. 






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