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Beatriz Granha e Mafê Viana

Resistência e celebração em Bento Rodrigues

Moradores celebram a tradicional Festa de Nossa Senhora das Mercês pela primeira vez após o início da restauração da capela original


Foto: Beatriz Granha

Após quase uma década de luta na justiça, foi iniciada a restauração da Capela de Nossa Senhora das Mercês, construída entre 1750 e 1815 em Bento Rodrigues. A igreja é a única que resistiu ao crime socioambiental em que o distrito foi destruído pela lama com rejeitos tóxicos da mineração, no rompimento da Barragem de Fundão, em novembro de 2015. Ela está localizada num ponto alto do território, o que impediu que a lama a atingisse. Por isso, naquele momento, a Capela foi um dos locais que os moradores utilizaram para se proteger.


Assim, o edifício, que já possuía grande importância simbólica para a comunidade, se tornou também um símbolo de resistência, especialmente após a destruição da Capela de São Bento, construída em homenagem ao padroeiro do distrito, que foi atingida pelo rompimento da barragem e da qual restaram apenas ruínas.


Nos anos seguintes ao crime, moradores denunciaram o descaso e o abandono do espaço: após vários anos sem manutenção, a Capela das Mercês estava danificada e apresentava graves danos estruturais: “A igreja foi se deteriorando ao longo dos anos, principalmente o telhado e a estrutura, o que se agravou com as detonações de explosivos da Vale na mina de Fábrica Nova, a poucos quilômetros dali”, afirma o mecânico Mauro Marcos da Silva, representante de Bento Rodrigues na Comissão de Atingidos pela Barragem de Fundão (CABF) desde 2016. 



Mônica dos Santos, liderança da CABF, explica que a Comissão iniciou uma luta pela restauração do espaço que durou quase uma década. O grupo reivindicou que as empresas mineradoras promovessem as obras de restauração da capela, que corria risco de desmoronar pelos graves danos estruturais, e, inicialmente, as empresas negaram o pedido com a alegação de que o bem não havia sido destruído pelos rejeitos. Mônica explica: “Cada um jogava a responsabilidade para outra instituição, então foi preciso fazer uma reunião com todos os envolvidos. Antes a gente mesmo fazia a manutenção da capela, consertava o telhado e o que precisasse, mas com o tombamento do IPHAN nós fomos impedidos de continuar”. Mônica se refere ao tombamento realizado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico (IPHAN), que proibiu que os moradores realizassem qualquer intervenção no prédio, e atrasou também as obras de restauração.


Em 2016 foi oficializado O Termo de Transação e de Ajustamento da Conduta (TTAC) pela União, pelos estados de Minas Gerais e Espírito Santo, e pelas empresas Vale, Samarco e BHP, definindo as condutas da Fundação Renova, criada com o intuito de promover as ações de reparação após o rompimento da barragem. Neste documento, em um dos 22 programas socioeconômicos propostos, foi firmada a diretriz de Preservação da Memória Histórica, Cultural e Artística, assegurando assim o restauro dos templos religiosos e outros bens do patrimônio coletivo, tombados ou inventariados. A aprovação da restauração pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (IEPHA) aconteceu em 2022, mas as obras foram impedidas temporariamente devido ao tombamento do edifício. Por aproximadamente dois anos, a decisão ficou em caráter provisório, mas com garantias de preservação. Apenas em 2020 o processo foi oficializado e a proteção da capela passou a ser interestadual. 


No dia 27 de maio de 2023 a Comissão de Atingidos realizou um evento em que os participantes cobraram a restauração e “abraçaram” a capela, demonstrando seu respeito pelo espaço e pedindo mais uma vez pela intervenção, reiterando a importância cultural, simbólica e identitária da Capela da Mercês para a população de Bento Rodrigues. É importante observar que o monumento seguia íntegro e o espaço era utilizado normalmente desde o século XVIII. 


Foto: Hynara Versiani

Em setembro do mesmo ano, a Justiça acolheu um recurso feito pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) contra a decisão de primeira instância, que foi indeferida, e obrigou a Samarco, a BHP e a Fundação Renova a iniciarem as obras de restauro em até 30 dias, com multa diária prevista de R$50 mil em caso de descumprimento. Um trecho do recurso dizia: “O mau estado da Capela das Mercês decorre exclusivamente do rompimento da barragem de Fundão". Na decisão, o desembargador Afrânio Vilela, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), considerou que, “embora não tenha sido diretamente atingida pelos rejeitos, a capela ficou isolada na comunidade, vindo a sofrer danos e consequente depreciação desde então". As obras só se iniciaram recentemente, no segundo semestre de 2024.


No reassentamento feito pela Fundação Renova, chamado de Novo Bento, foi construída uma igreja com o objetivo de representar simbolicamente a Capela das Mercês. Neste ano, a Festa de Nossa Senhora das Mercês, tradicionalmente realizada em setembro, aconteceu pela primeira vez na Igreja nova, nos dias 19, 20, 21 e 22 de setembro. No Brasil, a comemoração da Festa de Nossa Senhora das Mercês,“importada” da Espanha e Portugal, é realizada desde o século XVII, em que foram formadas confrarias devotas de Nossa Senhora das Mercês, formadas principalmente pelos povos escravizados, que a consideravam a padroeira de sua libertação. Anualmente, na segunda quinzena de setembro, a tradicional Festa é realizada em diversos municípios brasileiros, e é uma forte tradição de Bento Rodrigues.



No final de semana seguinte à festa no reassentamento, em 28 de setembro, foi celebrada uma missa em honra à Nossa Senhora das Mercês no distrito de Bento Rodrigues, no entorno da Igreja original, devido ao isolamento da capela para as obras de restauração. A tradição segue invicta desde o rompimento da barragem: até 2023, a comunidade realizava a celebração dentro da Igreja, mesmo em estado grave de deterioração. Em 28 de setembro de 2024, a missa foi celebrada pelo Padre Marcelo Moreira Santiago, responsável por atender a comunidade, e aconteceu numa tenda em meio ao pátio de obras. 



Mauro afirma que o objetivo de promover a missa no território original é manter a tradição e reafirmar o pertencimento ao local. “A atmosfera de Bento Rodrigues é única e nunca será reproduzida num novo território, nem com mansões, nem com todo o dinheiro do mundo. Mesmo com a construção do reassentamento, não se perde o vínculo com a origem”, relata. Ele integra o “Loucos por Bento Rodrigues”, grupo de moradores que se uniu com o objetivo de continuar ocupando o território: “No intuito de reafirmar o nosso pertencimento com o local, contrariando determinações do poder público que proibiam a entrada no território, permanecemos sempre estando lá, visitando, até que no final de 2016 resolvemos passar a primeira noite lá, e desde então, em todos os finais de semana algum de nós está lá.” Atualmente, diversos membros do grupo passam seus finais de semana no distrito, numa das casas que foi preservada e se tornou um ponto de confraternização e um espaço de resistência.



O mecânico conta que cultuar os padroeiros do distrito, Nossa Senhora das Mercês e São Bento, é uma tradição antiga, e que em sua infância as festas eram glamurosas, com representações de desfiles de reinados e presença de congados. Por mais que as festas tenham se tornado mais simples com o passar dos anos, Mauro defende a importância de preservar as tradições culturais e transmiti-las para as gerações futuras, e afirma que o grupo continuará realizando as festas no território de origem, concomitantemente às festas que são feitas no reassentamento. Mauro explica que não frequenta as igrejas novas e não participa das festividades no reassentamento por uma escolha pessoal, e por estratégia de busca pela reparação justa: “Nós não tivemos participação no projeto das novas igrejas, sob alegação da Renova de que era um bem particular, e por isso o projeto deveria ser elaborado e acompanhado pela empresa proprietária. A arquidiocese ainda não assumiu a gestão desses locais. Nas ações da Renova há uma falsa imagem de que tudo está bem e de que a comunidade está resgatando os modos de vida, no intuito de enganar a opinião pública e as autoridades judiciais”. Moradores que escolheram não se identificar reforçam a importância de sua relação com a Capela original e relatam que não sentem pertencimento algum na nova Igreja. “Nem parece igreja, eles fizeram tudo do jeito deles”, relata uma delas.


O restaurador Carlos Eduardo Campos esteve imerso na cultura e no dia a dia do distrito por mais de 20 anos e foi o responsável, antes do rompimento da barragem, pela restauração do acervo de imagens da Capela de São Bento. O restaurador salienta a importância da preservação dos espaços religiosos e culturais e a proteção dos patrimônios imateriais, como as festas e tradições. Em relação à Capela das Mercês, para além da relevância religiosa e cultural, Carlos Eduardo afirma que a preservação é fundamental também para que as próximas gerações tenham contato com a história e com a identidade de Bento: “A Igreja das Mercês representa um ponto de referência e resistência das pessoas que foram atingidas pelo rompimento da barragem, foi o local onde eles se reuniram para se salvar da lama, e ali permaneceram. A preservação desse espaço é necessária para manter a história de Bento Rodrigues e para que outras gerações possam ir ali e ver o outro lado da mineração.”


Maria Ângela Campideli nasceu, cresceu e viveu a maior parte de sua vida em Bento Rodrigues. Emocionada, participou da celebração e afirmou: “Eu lembro das festas das Mercês quando eu era criança, é aqui que nós queremos estar, eu cresci aqui, meus pais foram enterrados aqui, e eu também quero ser. É muito triste ver como o lugar está hoje”. Ao visitar o distrito de Bento Rodrigues, além das casas destruídas pela lama, chama atenção a quantidade de casas arrombadas, sem portas e janelas, mas que ainda estão de pé. “Levaram minhas portas, janelas, fios de luz, box do banheiro, tudo, tudo que nós tínhamos aqui eles levaram, e agora improvisamos para poder vir nos finais de semana”, conta Terezinha Quintão, dona da casa que hoje serve como ponto de confraternização da comunidade, se referindo a grupos que invadiram e saquearam as casas que não foram derrubadas pela lama pouco tempo após o rompimento.



A comunidade, profundamente atingida pelo rompimento da barragem e por todos os seus desdobramentos, negligenciada e simbolicamente violentada pelos responsáveis, segue lutando, dia após dia, pela reparação justa e pela ocupação de seu território de origem. Na noite de sábado, 28 de setembro, as ruas do distrito foram tomadas pela fé, pela devoção à padroeira e pelo amor dos moradores à sua terra natal: foi realizada uma procissão, a missa, e queima de fogos de artifício. O evento contou com a presença da Banda São Sebastião, de Brumadinho, município atingido pelo rompimento da barragem da Vale Córrego do Feijão, em 2019.


Manoel Marcos Muniz, conhecido como Marquinhos, é representante de Bento Rodrigues na CABF desde o final de 2016, e não esconde a emoção ao afirmar que a restauração da Igreja é uma conquista muito emocionante, após tanto tempo brigando por isso: “Quando a restauração acabar, e nós podermos voltar a fazer a missa lá, vai ter choro, com certeza.”




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